Hoje, 22 de Agosto, no Público:
Há duas formas radicalmente diferentes de definir a relação
entre uma lei e a sociedade a que ela se aplica. As leis podem ser expressão de
uma vontade, ecos do colectivo, e nesse caso a sociedade aceita essa lei como
sua sem a contestar, ou a lei pode “ir à frente” da sociedade, e dirigir,
impondo um caminho que por vezes é contestado ou, pelo menos, não cumprido na
íntegra – supondo nós que esse “ir à frente” é legitimo porque se enquadra numa
visão de progresso civilizacional, dimensão hoje cada vez mais complexa de
aceitar de forma cega.
Para nós, hoje, cidadãos europeus do século XXI, e herdeiros
de toda uma série imensa e violenta de revoluções e de grandes alterações
mentais, a secularização da sociedade parece natural. A laicidade do
funcionamento das instituições parece-nos ser como que imanente à própria forma
de organização e de ordenamento da natureza, um dado indiscutível.
No Médio Oriente, nos casos turco e egípcio -os casos que
mais vezes eram indicados como os que mais longe tinham ido nessa separação de
poderes que, no mundo islâmico parece tão complicada de fazer pela própria
natureza do Direito e pela literalidade de leitura do Texto Sagrado- , a
secularização das instituições que teve lugar ao longo do século XX em nada vem
de uma sustentável vontade popular.
A laicização da sociedade e da forma de entender o Estado, é
em tudo um fenómeno do ocidente europeu e da América do Norte. É um processo
que começa com a Reforma Protestante, que com as teorias do Direito de finais
do século XVII e com o Iluminismo se consolidam e ganham foro de Lei nas
Revoluções Liberais.
Quer no Egipto, quer na Turquia, milhares de anos nos olham
com a serenidade do tempo que tudo envolve, mas onde quase sempre os poderes
foram absolutos e teocráticos. Os fenómenos de laicização do Direito e da
Política em países como o Egipto ou a Turquia, não saíram de um longo processo
de maturação de ideias “autóctones”, de um caminho de uma elite através da sua
identidade cultural integrada, mas de todo um conjunto de factores de
manutenção de poder fora da esfera religiosa, legitimando uma nova elite, os
seus lugares e as suas funções.
Na Turquia de Atatturk, a laicização deu-se pela forma de
uma revolução que impôs essa mesma laicidade que, na Europa onde nasceu,
implicava directamente a Liberdade. É neste jogo de contrários, de uma
laicização que é em tudo ideologia política imposta e não vontade popular
desenvolvida, que vemos a Democracia, a liberdade de escolha, de ambos os
países definir um caminho que potencia a negação dessa mesma laicização.
O fundador da moderna Turquia, com gestos perfeitamente
déspotas para as formas de acção que hoje defendemos, proibiu as roupas
identificadas com o Islão em 1934, levando à adopção de roupas europeias pela
elite nacional. Simbolicamente, a esposa de Ataturk deixou de usar o chamado
véu islâmico. A esposa do actual presidente Turco já foi duramente criticada
por sectores mais radicais por o usar…
As
mudanças nunca se fazem por decreto, nem se importam. Sobretudo quando a
tradição está cimentada na identidade religiosa.