sábado, 23 de novembro de 2013

Anti (semitismo - judaísmo - israelismo – sionismo): algumas diferenças

Cada vez mais urge olhar para as palavras que usamos com um cuidado redobrado, fugindo à leveza da fugacidade das realidades passageiras.
De facto, no actual mundo do fast food intelectual e cultural, assistimos constantemente ao abusivo uso de determinados conceitos, de vocábulos que nasceram com definição clara do seu sentido mas que, pelo seu uso muitas vezes irresponsável, o perderam por completo, lançando um caos pantanoso onde tudo pode ser dito.
Não se trata de um purismo linguístico, mas sim de um esforço que é necessário fazer para afastar muitos mal entendidos e muitos juízos de valor.
E é importante tratar as realidades com os nomes que, de facto, se lhes aplicam, porque os nomes, as palavras, querem dizer alguma coisa, criam nuances de sentido, subtilezas de pensamento. A generalização de certas expressões que deixam de ter um sentido claro é uma das mais profundas provas de iliteracia.
O caso dos quatro vocábulos usados em título é significativamente importante porque nos obriga a um exercício de pensamento em que se separam fenómenos diferentes. Sem se compreenderem, nas suas especificidades, esses fenómenos, podemos estar a lançar os conflitos para campos ainda mais dramáticos, criando assim uma nova conflituosidade.
Esta conflituosidade criada nas opiniões mediante o uso de certas expressões, pode levar a reacções extremadas por parte de grupos islâmicos e judaicos, dificultando o diálogo e lançando ainda mais discórdia: o uso errado de certas palavras leva-nos para um horizonte de criação de uma guerra virtual em torno de judeus, islâmicos e “ocidentais”.
Historicamente, o «anti-judaismo» nasceu primeiro. Baseado na ideia de que os judeus mataram Jesus, o Cristo, o Deus Vivo, criou uma mácula que se estendeu por dois milénios. Culpados do deicídio, os judeus foram perseguidos por praticarem uma religião que conduziu a esse crime máximo, constantemente considerados um dos males do mundo.
«anti-semitismo» difere da noção anterior porque perdeu a carga religiosa e se abriu ao horizonte cultural mais largo do mundo semita. Um anti-semita não persegue um judeu porque ele pertence a uma religião, a um grupo humano, que optou por matar Jesus.
O anti-semitismo existe porque vê nos judeus os descendentes de uma raça inferior, os semitas. Ora, duas considerações há a fazer: 1) este fenómeno está plenamente enquadrado numa Europa que não integrou as comunidades judias, e que via nelas algo de exterior a si mesmas (os semitas não eram europeus, eram asiáticos); 2) esta palavra teve maior expressão aplicada a judeus, mas designava genericamente todas as populações com origem no Médio Oriente, incluindo árabes e islâmicos.
Desta forma, o que se passa em Israel, na Palestina e no Líbano nunca pode ser designado como anti-semitismo: ambos, palestinianos e israelitas, são semitas.
Donde, é a noção de «anti-israelismo» que deve ser lançada em campo em detrimento da anterior. E este campo já pouco tem a ver com a religião, já pouco tem a ver com a visão de raças inferiores, em tudo tem a ver com uma delimitação de um estado, em tudo tem a ver com a definição das fronteiras e com as resoluções da ONU que obrigavam Israel a confinar-se a uma determinada linha fronteiriça.
Ser anti-israelita não implica uma posição antisemita. Um dos «anti» é de natureza “rácica”, o outro, é de natureza política.
Mas, obviamente, nada é linear. Transversalmente, há ainda a ideia de «anti-sionismo», conceito de mais difícil definição. O moderno sionismo nasce no século XIX e tem como objectivo o restabelecimento de uma pátria judaica no espaço do antigo Israel. Muito do anti-semitismo do século XIX nasce por oposição às linhas de poder de grandes famílias judias que fomentaram esses discurso de regresso à Palestina.
Para muitos, esse regresso implicava um domínio completo e total da região, e não apenas de um território mais pequeno. Pretendia-se, miticamente, alcançar os vastos domínios de David e de Salomão, recriando uma certa ideia de império, de domínio muito acima do nacional.
Complexificando ainda mais um pouco, o facto de o Estado de Israel ser um Estado Judaico, e de os judeus pelo mundo fora se sentirem solidários com essa nação (muitas vezes com dupla nacionalidade simplesmente por serem judeus), provoca o esbatimento dos conceitos anteriores. Por analogia, as reacções às comunidades judias fora de Israel são como que um ataque a Israel na medida em que há uma relação próxima entre essas duas realidades.
Muito se ganhava se as palavras fossem usadas correctamente. Muito do que de conflito latente se tem criado na Europa poderia ter sido talvez evitado, ou amenizado, se quem escreve ou fala sobre estas questões não falasse, por exemplo, constantemente em anti-semitismo, relançando um fantasma que, agora, quase não existe. Se continuarmos a falar tanto dele e da forma como o temos feito, talvez o ressuscitemos ...
Texto publicado no jornal diário Público, a 13 de Agosto de 2006.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

União Europeia / Turquia: o regresso da noção de cristandade?

Queiramos ou não, gostemos ou não, todas as nações apresentam na sua estrutura identitária dados vindos do mundo religioso. Portugal é um país de base cultural católica. Sejamos, de facto, católicos, ou então evangélicos, protestantes, budistas, judeus, ateus ou laicos, etc, não nos podemos esquecer que a nossa cultura nasceu e se desenvolver num contexto que privilegiou secularmente um credo; só em 1974 o catolicismo deixou de ter lugar consignado na Constituição; só em 2001 foi votada uma Lei de Liberdade Religiosa – é significativo.
Somos inconscientemente herdeiros de um passado irrevogável, e através dele nos apresentamos profundamente marcados na nossa forma de estar e de viver o mundo e os seus problemas.
Não está certo nem está errado: é um facto histórico com o qual temos de conviver e que devemos ter presente sempre que pensamos em cultura em Portugal. Dependente de Roma e do catolicismo, ou afirmando-se a ela irreverente e tomando formas de recusa, toda a nossa cultura não passa ao lado desse realidade: a base católica do país.
Toda a Europa comunga da mesma noção identitária, mais ou menos enraizada nas suas gentes e nos seus hábitos.
Durante longos séculos, no Ocidente medieval, mais que reinos, principados e condados, havia a grande mole que identificava o todo colectivo, a «cristandade». De facto, a génese da cultura ocidental está profundamente ligada à noção de organização do mundo que tem em dados imaginários e simbólicos os principais referentes da construção geográfica.
Mais que identidades políticas autónomas, a cultura medieval, onde Portugal logicamente se inclui, tinha como fundamentais referentes do espaço categorias simbólicas e espirituais. O horizonte geográfico era um horizonte espiritual. A Europa, os Estados-nação, construíram-se mediante uma identidade que era, essencialmente, religioso-simbólica: a ideia de cristandade que se afirmava face aos que o não eram.
A contínua polémica em volta da retoma das negociações para a entrada da Turquia na União Europeia trouxe novamente esta identidade ancestral da Europa ao de cima.
Porque é que a Turquia, segundo, entre outros, Valery Giscard d’Estaing, não pode entrar para a EU? Está fora da Europa? Será por isso?
Pode ser, levado em sentido estrito, de facto. Grande parte do território da Turquia não se encontra no continente europeu, o mesmo se passando com a sua população. É um argumento que pode parecer lógico, mas não satisfaz. A delimitação entre Ásia e Europa é significativamente artificial; basta ver que a Rússia engloba há séculos territórios de ambos os lados e em nada isso fez perigar a sua unidade; são as escassas centenas de metros de mar que dividem ao meio a antiga Constantinopla que marcam uma radical diferença entre povos?
Ora, o que se passa é que a Turquia será o primeiro pais da União Europeia a não ter como base religiosa o cristianismo numa das suas versões históricas: catolicismo, ortodoxismo ou protestantismo.
Durante séculos o Ocidente europeu fez cruzadas para afastar o muçulmano da Terra Santa; durante séculos os Papas exararam bulas a exortar à guerra contra o “infiel”, e os reis da cristandade responderam a essas bulas com sangrentas conquistas.
Durante séculos o muçulmano foi, de facto, o grande “papão” da Europa. Temos um grande preconceito que vem do século VII da nossa era em relação ao Islão.
Foi com esse preconceito, com essa visão negativa do “outro” que construímos a nossa identidade. É nos impossível ultrapassar essa herança de forma fácil. Pode a Turquia entrar para o clube das nações da Europa?
Pode a Turquia juntar-se ao grupo de países que durante séculos viram o seu espaço e a sua religião como a principal marca do demónio no mundo dos homens?
Que sabemos nós sobre a cultura turca? Sobre o Império Otomano que normalmente é totalmente esquecido nas nossas disciplinas de História?
Nada. Somos, nós Europeus, totalmente desconhecedores dessa realidade culturalmente riquíssima que é a Turquia, herdeira do grande Império Otomano. Só o pré-conceito existe. Nada de conhecimento.