segunda-feira, 29 de julho de 2013

para recordar Damasco

elementos telegráficos

Oásis caravaneiro desde tempos remotos, a cidade de Damasco tem, devido a um curso de água que a circunda, uma capacidade agrícola significativa. É, possivelmente, a cidade mais antiga do mundo habitada
ininterruptamente.
O nome desta cidade já aparece atestado na documentação cuneiforme de Ebla e na documentação egípcia do século XII a.C., grafado como «Dimaski».
Segundo as tradições bíblicas, David ter-se-á apoderado dela aos Arameus no início do último milénio a.C. (2Sm 8). No reinado seguinte, de Salomão, a cidade terá sido perdida (1Rs 11). O reino autónomo que aí se desenvolve será, em certas alturas, árbitro entre os reinos irmãos mas beligerantes de Israel e de Judá.
Em 732 Damasco passa para mãos Assírias, e depois para a órbita do mundo Persa. Jerusalém passa a depender de Damasco. Mais tarde, depois da conquista de Alexandre em 332, a cidade será campo de lutas entre os generais sucessores do jovem conquistador. A conquista romana deu-se em 64 a.C.
Na época de Jesus, Damasco era sede de uma importante colónia hebreia. Local cosmopolita, rapidamente desenvolveu uma comunidade cristã. Será neste contexto que Saulo de Tarso é encarregue (como voluntário) de trazer para Jerusalém os faltosos que seguissem os de Jesus (Act 9, 2). Será, nesse caminho, o famoso Caminho de Damasco, que se dá uma hierofania que alterará a vida do “inquisidor”, transformando-o em discípulo, em Paulo.
Como reflexo da sua importância económica, em 117 Adriano elevou-a à categoria de «metrópoli». Manteve-se uma cidade de primeira referencia até ao século VII, quando é saqueada pelos Persas.
Damasco foi a capital do primeiro grande império islâmico, o dos Omíadas. Em 635 é conquistada, após seis meses de cerco, por Khalib Ibn al Walid. Por mais um século, terá um novo apogeu, uma nova época de glória.
Depois, as cidades que marcarão o ritmo do devir serão Bagdad, Cairo, Mossul, entre outras. Durante as cruzadas, a cidade converte-se num símbolo da resistência islâmica na região, recebendo muitos refugiados que fogem ás atrocidades dos conquistadores cristãos. São reforçadas as muralhas e as portas. A cidade é
atacada duas vezes, uma em 1129 e outra em 1140.
Com Saladino, Damasco afirma-se novamente como o grande centro islâmico da região. Com muitas escolas corânicas, madrassas, a funcionar, a cidade afirma o sunismo.
Em 1400 é atacada e saqueda novamente, agora sob investida dos Mamelucos. Posteriormente, em 1516, será tomada pelos Otomanos. Até ao século XVIII manterá um forte ascendente pelo menos regional. O século XIX verá a decadência económica, e o desaparecimento do poder da cidade no panorama internacional.

uma vida nuns dias de viagem. impressões

Foi há uns anos, nem parecem muitos, que tive a possibilidade de andar pela Síria. Naturalmente, fui a Damasco. Visitei o magnífico museu de arqueologia, onde vi, entre muitas peças, os excepcionais frescos da sinagoga de Dura Europus, uma notável edificação da época romana, e um sem número de estátuas de Baal, a divindade com a qual eu dividia os meus dias, então em fase de redacção da minha aventura de doutoramento.
Ao visitar essa cidade milenar, fi-lo com a leitura atempada de Frei Pantaleão de Aveiro. Foi com as suas palavras de espanto pelo cosmopolitismo que me embrenhei no imenso bazar. Fui aos banhos, comprei roupa de seda, linda de morrer, com um corte elegante e com uma textura nunca por mim antes vista.
Quase me perdi nesse emaranhado gigantesco de ruelas onde o cheiro a especiarias nunca nos abandona. E nunca me abandonou esse sentido de estar num lugar fora das escalas em que normalmente vivemos.
Foi dos momentos mais bonitos aquele que vivi ao desembocar desse bazar, de ao longo começar a ver a luz de um sol abrasador e, metro a seguir a metro, perceber o fim das tendas e bancas, abrindo-se um limbo, um terreno de continuidade, mas já liberto de tantas mercadorias, onde uma colunata romana abria caminho até uma das portas da Mesquita Omíada construída há quase mil e quinhentos anos.
Nesse olhar, que eu fotografei vezes sem fim, três realidades se cruzavam nessa economia de trocas que é o passar e o ver. O lucro, esse foi meu, que ainda hoje, cinco anos depois, transporto comigo essa lembrança que trouxe sem pedir autorização a ninguém.
Obviamente, entrei na Mesquita onde, diz a tradição, está sepultado João Batista. Vi o túmulo, andei por entre as gentes, assisti à oração. Mas o que mais me marcou foi a gigantesca decoração floral que num dos lados essa mesquita milenar apresenta. É um emaranhado complexo de ramos e folhagens onde se vislumbra, no meio de um verde exuberante, uma Árvore da Vida sem par.
Tanta simbologia a remeter-nos para uma origem, para um Adão a quem Deus tudo deu. Um Adão que ali estava plasmado no “caminho” de cada um, na sua forma de agarrar esses troncos e de os materializar na Vida.
E Damasco era isso mesmo, um amplo lugar de peregrinação. Acompanhei a visita aos lugares da memória de Paulo, esse complexo de teologia e estratégia que pegou no pequeno grupo de judeus seguidores de Jesus e os transformou no rótulo adquirido em Antioquia, “cristãos”.
Mas também fui aos lugares de peregrinação xiita. Em momento feliz, encontrei-me na cidade no momento da grande peregrinação à Mesquita de Sayyidah Ruqayya onde se encontra o corpo da filha de Ali.
Foi, sem dúvida, dos momentos mais excepcionais da minha vida. Estive no interior da mesquita bem mais de uma hora. Todos no grupo estavam com claros receios. Entrámos. Ninguém nos perguntou nada à entrada. Uns com mais medo que outros, lá nos fomos embrenhando num espaço onde, por vezes, era difícil encontrar os centímetros quadrados onde colocar os pés.
No pátio exterior, as mulheres escolhiam um lugar onde colocar um pano e orar. No topo, colocavam uma pequena cerâmica oval com o grafiti da mesquita de Karbala. A essa pequenina peça de argila encostavam a cabeça quando se baixavam, colocando-se, assim, também eles naquele mundo onde o sangue dos seus mártires marca toda a mentalidade.
Mais no interior da mesquita, no salão central, decorria um rito só com homens. O início foi para mim verdadeiramente assustador: a pouco e pouco, o ritmo sincopado do bater nos punhos no peito, ascendia a um volume que tudo fazia abanar.
E ali estive, não sei quanto tempo. Senti esse bater dos dois punhos entrar-me pelo corpo e fazer-me tremer exactamente a esse ritmo, com uma tal força que me era impossível ficar indiferente. Parecia que tudo tremia. Paredes, tectos, pessoas, o Mundo.
E o êxtase estava ali à minha frente. Muitos homens, no centro do espaço, rodopiavam ao mesmo ritmo das batidas em cima do coração. Não sei como sobreviviam aqueles corações, mas as pessoas, passado algum tempo começaram a desmaiar.
Caídos uns em cima dos outros, muitos arranhavam-se, arrancavam cabelos, faziam-se em sofredores, repetindo, de alguma forma, os mártires que veneravam.
Já todo o grupo se recolhia a um lugar combinado, onde o guia nos iria resgatar de qualquer problema que tivesse ocorrido. Mas nada, nada de mais se passou, a não ser ter vivido algo único.

Vejam a brochura"Memórias de Damasco" que publicámos no Clube de Filosofia Al-Mu'tamid:

http://ulusofona.academia.edu/PauloMendesPinto/Papers

domingo, 28 de julho de 2013

Quando o intolerar se torna mais que ridículo, infantil

Por mais que vivamos, seremos sempre confrontados com situações em que a realidade supera a nossa imaginação. Pode parecer uma frase batida, uma forma cativante de dar corpo ao início de um pequeno texto. É-o, claro. Mas não o é apenas.
Neste momento revejo as provas de um livro que sairá em breve. Com o José Eduardo Franco  recolhemos um grupo largo de textos portugueses que são instrumento hábil para fomentar uma educação para o diálogo ou, pelo menos, para a tolerância.
Mas este momento recorda-me uma situação que me apeteceu transmitir aqui, numa vivência na primeira pessoa.
Já lá vão uns anos. Talvez uns quatro.
Eu tinha ido há pouco tempo ao Brasil dar aulas a uma turma de Pós-Graduação em Maceió. A experiência fora excepcional e, felizmente, dessa turma já vieram defender Dissertação de Mestrado quase meia dúzia de alunos, todos com trabalhos excelentes.
Mas não é sobre estes alunos de altíssima qualidade que o meu episódio se centra. Quem dera!
Regressado do Brasil, passados uns meses, fui visitado em Lisboa, por um dos professores brasileiros desse curso que vinha acompanhado por um grupo de Pastores. Vinham fazer um périplo por Portugal. Não me recordo se iriam a algum outro país europeu.
Recebi-os na universidade e, como no dia seguinte íamos fazer uma visita de estudo à Mesquita, fiz o convite que, de imediato o meu colega brasileiro aceitou.
No dia seguinte, pela hora combinada, todos se encontraram à entrada da Mesquita Central de Lisboa. O convite era para assistir à oração que teria lugar por volta das 13h. Tal como faço sempre com os meus alunos, fomos mais cedo para se poder comer no refeitório da própria mesquita, o que é um evento em si, que recolhe inequivocamente o agrado de toda a gente.
Mas desta vez foi diferente.
Na véspera, um colega meu na Un. Lusófona, e pastor, estivera com ele. Foram visitar a igreja que ele dirigia na altura. Espantado com o fundamentalismo de alguns elementos do grupo, quando soube que eu os levaria à mesquita, lembrou-se de fazer a seguinte experiência: no momento em que eu os dirigia para o refeitório, ele ligou a um deles, perguntando.lhe se iam comer com os infiéis...
Depois de uns segundos de hesitação, seis deles decidiram, de um momento para o outro, que não tinham fome.
Tantas vezes eu recordo esta situação ridícula quando revejo textos sobre tolerância....