sábado, 6 de dezembro de 2014

Em tempos de morte da natureza, a ideia de renascimento

Desde a mais remota Pré-História que o marco geométrico da duração do dia deveria ser sinónimo de práticas religiosas muito importantes. Nas regiões mais a Norte da Europa, onde no Inverno o Sol se punha durante semanas a fio, eram enviados verdadeiros heróis para o cimo das mais altas montanhas para que testemunhassem o regresso do astro rei.
Também na Mesopotâmia, da qual somos em muito herdeiros, era em torno do dia mais curto que se celebravam algumas das festividades mais significativas. Naturalmente, o dia mais curto anunciava o nascer de uma época nova em que o Sol voltava a dominar crescentemente o horizonte, vindo cada vez mais os dias longos. A noite mais longa, era também a marca do fim do seu reino e o prenúncio da vitória do Sol e da luz.
No tempo de Jesus, a data do solstício de Inverno era marcada pela principal festa em honra de Mitra, o deus Princípe do Bem, oriundo do panteão persa e elevado a uma das principais divindades cultuadas no Império Romano.
O dia do Sol Invicto será, ainda em Roma, a festa que evoluirá, em grande medida, das Saturnálias, em honra de Saturno, para o culto ao Imperador.
 
No universo, venera aquele que está mais alto; nomeadamente, Aquele a que tudo o resto serve, e que dita a lei para todos. Da mesma maneira, venera o mais elevado em ti mesmo: ele constitui, com o Outro, uma só peça, uma vez que em ti próprio também reside aquilo a que tudo o resto serve e pelo qual se rege a tua vida.
Marco Aurélio, Meditações, livro 5, 21.
 
Esplêndido te ergues no horizonte do céu
Ó Aton vivo, criador da Vida;
Quando surges no horizonte do oriente,
Enches as terras com a tua beleza.
Tu és belo, grande, radioso,
E estás acima de todas as terras;
Os teus raios envolvem os países
Até ao limite da tua criação.
Ré, dominas as suas fronteiras,
Submete-los ao teu amado filho;
Embora estejas longe, os teus raios tocam a terra,
Ainda que te vejam, ocultos são os teus caminhos.
O Grande Hino a Aton
Túmulo de Ai, parede ocidental.

sábado, 4 de outubro de 2014

Rosh Hashanah - Início do Ano Novo judaico - 1 de Tishrei (ao pôr-do-sol de 24 de setembro)


O início do Ano Novo na tradição judaica encontra-se profundamente ligado à ideia de renovação. Normalmente, os calendários encontram muitas vezes ciclicidades ligadas ao mundo agrário, aos ritmos da natureza, às ideias de renascimento e de morte, seguindo as estações do ano. No caso judaico tal pode acontecer, mas o sentido profundo teológico encontra-se na própria ideia de Criação do Mundo.
De facto, as tradições rabínicas colocam a abertura do ano nesta data porque é aí que, interpretando os Textos Sagrados, a Torah, se definiu ter sido criado o mundo. Assim, este início de ano é um momento absoluto e único que, não apenas marca e festeja essa data primordial, como liga toda a comunidade ao que de essencial ela representa. No livro de Levítico 23: 24, na referida Torah, fala-se no dia Dia da Aclamação. O sentido é o de ligação ao momento primeiro da Criação e, obviamente, ao próprio Criador.
Assim, este dia é, verdadeiramente, o momento de reflexão e de balanço de todo o ano anterior. No primeiro dia do ano dá-se início a todo um período de meditação em torno das falhas marcadas, muitas vezes, pelas imagens das desobediências e dos erros dos personagens do Génesis bíblico, seja Adão e Eva, ou mesmo Caim.
Passagem de um ano a outro, para algumas tradições, este dia é o Dia de Julgamento, o dia em que o Criador faz o balanço entre os justos e os ímpios. Na espiritualidade de cada um, este primeiro dia do ano abre dez dias de reflexão que terminam no Dia da Expiação, o Yom Kippur.

O Ano Novo judaico, mais que um evento de celebração, com os seus rituais e orações próprias, é um tempo de meditação, de balanço e de avaliação.

sábado, 20 de setembro de 2014

Frei Bento Domingues, reinventar a criança em nós

Frei Bento Domingues foi ontem homenageado num plenamente cheio auditório da Fundação Gulbenkian. Ouvi falar sobre ele. Ouvi-o a ele falar. E era imperativo escrever sobre esta figura que tanto me marcou, e cada vez mais marca.

E é imperativo trazer Frei Bento à luz destas linhas porque elas nunca lhe poderão corresponder. Por mais que martele nas teclas, delas nunca daqui sairá o sorriso que é seu apanágio. Sim, em Frei Bento, é o seu sorriso contagiante que mais facilmente nos deixa desarmados, provocando-nos um inevitável transtorno. Um sorriso que é imagem do que devíamos dar a nós mesmos como seres humanos - a arte de sorrir, o tão difícil keep on trying, smile, seguindo Chaplin. Frei Bento desarma-nos numa luta que é o colocar-nos ao espelho. Essa é a sua principal arma.

E essa tal arma ele usa-a de forma tão simples e tão desconcertante que muitas vezes nos deixa sem saber o que é acaso e o que é pensado. De acaso nada tem, mas de pensado, muito menos. E é neste jogo de tantos inesperados que por vezes deixamos de saber o que é a sério e o que é a brincar, o que é crítica e o que é gozo, acima de tudo, o que é ironia (se o "a sério" tiver fronteiras muito definidas, reduzimos tudo aos maniqueismos simplistas de tudo arrumar em bom e em mau - não me parece que Frei Bento nos resuma e nos arrume dessa forma).

Há alguns anos, num baptizado, uma amiga, estupefacta com a forma como o Frei Bento se entrosava com as crianças durante a cerimónia religiosa, perguntava-me, espantada: "ele é sempre assim?". Pressenti ainda uma segunda questão, encapotada na primeira: seria “estilo”?. Sim, ele é sempre assim, disse eu, acrescentando como resposta à pergunta não feita, que não era estilo, era feitio! E é mesmo. É feitio, é forma de ser e de agir que sai espontaneamente, sem treino, sem pensar como sai na fotografia.

Estava ontem sentado num elegante sofá da fundação, aguardando com a minha filha a conferência do Dimas de Almeida, quando ouço da voz de uma jovem uma frase que reconheci logo. Dizia a jovem de pouco mais de 20 anos a alguém que poderia ser seu avô que ele, o Frei Bento, se o encontrasse lhe perguntaria logo se era feliz.

Reconheço essa frase, essa forma de contender picando-nos com uma afirmação que nos deixa descalços, uma frase que, no seu quê de aparentemente simplista, nos reduz a um simples essencial: a felicidade.

É de uma simplicidade existencial que nos choca. Quantas vezes paramos para nos perguntarmos se somos felizes? Esgotados no frenesim do momento presente, um momento ao ritmo dos SMSs, dos telemóveis e dos facebooks que nos geram amigos nunca vistos, vivemos estasiados por alegrias efémeras, incapazes de felicidade prolongada.

E, voltando às crianças e aos sorrisos, tudo o mais, é a máxima de Jesus, a figura que ele segue tão apaixonadamente. Se Jesus dizia "deixai vir a mim as criancinhas", então Frei Bento ensina-nos e pratica-o afincadamente, na simplicidade de ser criança. Sendo criança, irrequieto, capaz de brincar, essencialista, Frei Bento solta-nos das amarras de uma adultisse sem humanismo. O humanismo ele encontra-o e constrói-o no sempre ser simples, como uma criança.

E como criança. No dia-a-dia das necessidades desse mesmo quotidiano, Frei Bento faz algo a que damos o nome pomposo de Teologia. Mas não é isso o que ele faz. É que o mais sábio de tudo é saber que os caminhos não se encontram prontos, qual prêt-à-porter. Não são os artigos certos dos catecismos e dos dogmas que nos indicam o caminho a seguir. Ou melhor, indicar, indicam, deixa é de ser caminho. Porque o caminho faz-se, na frase batida, caminhando, não seguindo.

Na irrequietude e na inquietude, Frei Bento apenas nos diz o fundamental: Só sei que não vou por aí.








sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A instalação da desesperança

Desde 2001 que muito se tem falado sobre fundamentalismo religioso. Mais que saber e compreender os fenómenos fundamentalistas, criou-se o hábito de para aí tudo remeter, de nesse grande invólucro dar guarita a tudo o que, tendo algum aspecto religioso no seu facies, criava incómodo ou afrontava o "ocidente".
Contudo, é de desmontagem fácil a noção de fundamentalismo religioso, tal e qual ela vezes é aplicada. A leitura e interpretação literalista de Textos Sagrados não é, por si só, geradora de violência e criadora de conflitos. Uma suposta teologia fundamentalista apenas gera seguidores em ambientes de falta de cultura religiosa e, sobretudo, de falta de esperança através dos modelos de valores vigentes. E o mesmo é válido para o universo das ideologias políticas, pelo que o problema não é nem religioso, nem político, mas essencialmente social e cultural.
E é aqui, na "desesperança" que radica o centro do problema, não só dos fundamentalismos no seu todo, mas especificamente na capacidade de certos movimentos arregimentarem jovens para acções de terror com uma violência extrema.
No chamado "ocidente", são milhões os jovens sem emprego, sem perspectivas de futuro semelhante ao que foi consignado pelo American way of life que todos almejamos através da publicidade com que somos bombardeados diariamente. A verdadeira realidade do emprego, da educação, da saúde, e mesmo as visões políticas, económicas e financeiras geraram uma mole imensa de desesperançados no actual sistema de governação. Cada vez temos mais sintomas desta doença civilizacional que se manifesta, por exemplo, na grande abstenção e no crescimento dos partidos políticos radicais.
No chamado "Médio Oriente", o já referido "Ocidente", num quadro em que já nem os ditos "ocidentais" acreditavam no seu modelo, tentou-se impor normas e uma visão do mundo, o que levou aos desastres tremendos a que todos hoje assistimos. Libertou-se o Iraque de um ditador, mas deixou-se o Iraque na situação que todos conhecem, em que o auto-proclamado Estado Islâmico é apenas o último acontecimento desastroso de uma desestruturação social e cultural imposta por uma visão externa totalmente desconhecedora daquilo que fazia, muito menos das suas consequências.
Em ambos os casos, os fundamentalismos, sejam os vindos de ideologias políticas, sejam os supostamente religiosos, alimentam-se desta desesperança, desta incapacidade de gerar valores e de criar perspectivas e horizontes. Incapazes de gerar utopias que alimentem vontades positivas e gerem futuro, o "Ocidente" esvai-se em protestos internos e guerras externas.
Até onde irá correr esta sangria, é mistério para o qual nem os mais doutos especialistas dão previsões. Os desafios que se colocam nas políticas internas e externas são de natureza completamente diferente dos paradigmas anteriores.

Se até agora os radicalismos se alimentavam da fome para acenar com um futuro, um modelo, agora alimentam-se da falta de modelos e de futuros. Combater a desesperança com "mais do mesmo" apenas vai fazer alastrar o Iraque a muitos outros iraques, uns fora de portas, outros bem cá dentro.
             
Artigo no Público a 30 de agosto último.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Liberdade Religiosa e deveres perante o trabalho

Depois de várias polémicas sem resolução clara, a recente decisão do Tribunal Constitucional, que veio dar razão a uma cidadã adventista no seu direito a não trabalhar ao sábado, parece ter vindo criar uma jurisprudência que virá ser a norma na resolução de muitos mais casos como este.
A interpretação que era até agora dada da Lei de Liberdade Religiosa apontava para que a possibilidade de adaptação do horário individual mediante as práticas religiosas tivesse lugar num quadro em que já houvesse uma flexibilização de horários e quando, obviamente, essa alteração em nada beliscasse a produtividade.
Hoje, com esta nova posição dos juízes do Constitucional, é afirmado esse direito como fundamental no quadro das liberdades individuais. No fundo, como parte constitutiva da base e da identidade do ser e do indivíduo perante o colectivo que é o Estado, do que é inalienável enquanto direito constitucional.
E, realmente, é nesse patamar que a questão deve ser equacionada se, porventura, quisermos olhar para a liberdade religiosa como um elemento de consciência e não apenas como mais um proforma. No fundo, o que temos perante nós é a tensão entre o direito à liberdade de consciência e o dever de respeitar as normas do trabalho.
Mas em termos teológicos e de mentalidade, a questão é bem mais profunda. A questão é antiga e remonta a uma das mais antigas funções religiosas do Mediterrâneo: o prover de alimento, de paz e de estabilidade social. No limite, para o crente, quem provê do sustento? O trabalho, o empregador, ou Deus a cujos “representantes” muitas vezes, entrega parte do seu rendimento do trabalho, exactamente porque os encara como dádiva?
É que o trabalho, mais uma vez, num sentido teológico, não é apenas o que se consolidou como imagem dominante em parte da cultura católica: o trabalho como uma pena, um resultado da “queda” e do pecado original. O célebre “pão que o diabo amassou”. Não, nas culturas de raiz protestantes e judaica, a ética do trabalho sedimentou-se numa visão teológica em que o trabalhar é a continuidade que o homem realiza em relação à Criação divina. Portanto, trabalhar não é castigo; trabalhar é continuar a acção de Deus através de um mandato em que o planeta lhe foi entregue.
E aqui, olhar para o universo, o tempo, os momentos de trabalho, já implica uma instrumentação mental completamente diferente para se perceber o que está realmente em jogo.
Não se “falta” ao trabalho no sábado porque se vai participar num rito. Mesmo que no sábado se participe num rito, a essência do “sábado” não se encontra no rito. No limite, há uma diferença radical entre o participar num ritual ou o aparente nada fazer…  participar num rito pode, algumas vezes, ser adiado, como no caso de uma oração. Contudo, o fruir, o correr do tempo, reside já no patamar da plenitude do entendimento do sagrado. Manter todo um dia sem trabalhar, como o defendem judeus ou adventistas em relação ao sábado, dedicar um tempo inteiro e pleno a um aparente “nada”, é, de facto, a máxima santificação.
Na sua raiz, a palavra «sacrificar» significa «fazer sagrado», tornar sagrado. E santificar um dia é isso mesmo, sacrificar esse dia, tornando todo o tempo e espaço em sagrados. Não há possibilidade de, em consciência, um crente relativizar este princípio. Ou é, ou não é. Não pode ser parte, ou um pouco mais tarde.
E não pode ser alterado por regra humana porque, mais que tudo, esse tempo de dedicação ao seu sagrado é imagem de algo profundamente ordenador do mundo. Guarda-se o sábado porque nesse dia Deus descansou depois de completada a Criação. Portanto, guardar esse dia é repetir o acto e gesto primordial de ordenação do mundo.
Nas tradições do Mediterrâneo, quando por regra religiosa se para de trabalhar, é porque se está a glorificar esse mesmo trabalho, colocando-o à altura do que de mais importante existe.
É uma rotação brutal na forma como nos habituámos a olhar para a ética do trabalho. Mas a produtividade poderá ser a primeira a agradecer.



Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Agosto passado.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Circuncisão: O Estado na definição dos deveres dos pais

O início deste ano de 2014 parece estar a consolidar uma polémica que começara já no ano anterior em torno da circuncisão por motivos religiosos. A polémica estalara na Alemanha, mas também parece correr na Dinamarca e noutros países escandinavos que já apresentaram recomendações contra esta prática no Conselho da Europa.
A base das propostas que defendem a proibição de tal prática reside na valorização dos direitos da criança em relação à manutenção das práticas das tradições religiosas. Neste caso, o Judaísmo e o Islão são os alvos desta onda.
Obviamente que esse campo do Direito deve ser invocado. Depois de milhares de anos a menosprezar os menores, tratando-os quase sempre de forma sub-humana, fica “bem” à Europa finalmente colocar as crianças num lugar de direitos inquestionáveis.
Contudo, esta postura implica uma certa inversão na responsabilidade educativa e de identidade das crianças. Quais os direitos e os deveres da progenitura? Onde termina e como se define o que de espiritual os pais podem transferir para os filhos como parte de uma identidade colectiva, e quais os limites para as marcas que esses actos podem implicar?
Para a tradição bíblica, seguida por judeus e por muçulmanos, a circuncisão é a marca da primeira grande aliança entre Deus e o seu povo, na pessoa de Abraão. Pode-se encarra, sem esforço, que a circuncisão é a principal marca de identidade ritual nestas religiões. Mais que identidade religiosa, é identidade cultural e sentido de irmanação com os antepassados e o que eles representam.
De facto, ao retirar o prepúcio, os pais estão a efectivar na criação, a repetir o gesto primordial, da aliança que a sua religião representa. Daqui se percebe que a circuncisão é um acto central e nunca se pode comparar com a mutilação genital feminina que em nenhuma religião tem foro minimamente semelhante - para além de a circuncisão não minimizar ou retirar nenhuma capacidade ao homem, ao passo que o mesmo não se aplica no caso feminino.
Para os pais, circuncidar é, sim, tornar sagrado aquele bebé, integrando-o nos laços de uma aliança primordial. E tornar sagrado, no sentido primeiro da expressão, é sacrificar – sacre facere. É um sacrifício porque torna sagrado.
É claro que a nossa sociedade está numa deriva de protecção à criança que deve equacionar os limites da acção dos pais a muitos níveis. Mas a eventual proibição de actos milenares que, feitos segundo as regras estabelecidas há séculos, em nada fazem perigar a saúde da criança, nem lhe retiram capacidades na vida adulta, é imagem de um autoritarismo que nega em absoluto o papel e o lugar dos pais na passagem da sua cultura e identidade.
Mais, este universo de proibições, as do campo religioso, acabam sempre por definir muito mais que o simples acto que procuram banir. Neste caso concreto, são dois os grupos religiosos abrangidos: judeus e muçulmanos.
Num tempo em que tantos movimentos extremistas se revigoram na Europa com vitórias eleitorias que nos devem deixar alarmados, proibir a circuncisão tem um nada leve tom a déjà vu.

O que proibiremos a seguir?
           

Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Maio passado.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um regresso às praias do Meco - ou, o fascínio (mórbido) pelo iniciático

No meu entendimento, obviamente tolhido pelo defeito profissional, o “caso das praxes no Meco” trouxe à face visível da nossa cultura popular o lugar que os rituais iniciáticos detêm na nossa mitologia urbana. Enquanto historiador das religiões, tenho assistido a um constante fascínio que tudo o que é “iniciático” tem tido, de forma crescente, no nosso imaginário colectivo.
Dos “pactos de sangue”, aos Iluminatti de vários romances e filmes; das recorrentes teorias da conspiração, à existência de uma “ordem mundial” escondida; do efectivo grande crescimento que as ordens iniciáticas mostram hoje (das mais antigas às mais recentes e menos ligadas a alguma tradição), às constantes notícias que os nossos media veiculam sobre os poderes da maçonaria; muito no nosso dia-a-dia gira em torno do medo, muitas vezes do pânico, desses poderes escondidos que pretensamente nos manipulam.
De facto, num fascínio que faz vender livros, esgotar salas de cinema e vender jornais, cimentou-se plenamente essa ideia que nos diz que há sempre um “big brother watching you”… Mais, esse “big” em nada é “irmão”, fraterno, apenas deseja oprimir, esgotar recursos, sugar tudo à sua volta e dominar o mundo, qual regresso das teorias mais aberrantes do século XIX que desaguaram nos fascismos do século XX – com os medos colectivos e irracionais cimentados em obras como o Protocolos dos Sábios de Sião, regou-se o ódio que terminaria no Holocausto.
Hoje, muito longe de se buscarem responsabilidades no indivíduo que é cada um de nós, segue-se o caminho fácil de um bode expiatório que, no melhor sentido conspiracionista, não se conhece, não se vê, operando por poderes de controle emocional e por juramentos de um poder tremendo. É a porta para o “eles” que pulula nas conversas de café.
Seja a Maçonaria ou o Opus Dei, realidades existentes mas totalmente desconhecidas para quem faz juízos rápidos, ou os conteúdos dos romances de Dan Brown, tudo se gere emocionalmente no mesmo patamar de realidade, confundindo o que não é confundível. Vive-se a realidade muitas vezes como se fosse um longo romance em que, num sentido telenovelístico, há sempre um lado oculto, uma maquinação, uma dimensão escondida. Sim, porque “eles” estão sempre aí! Especialmente quando não se vislumbram… não os ver é prova de que nos observam e dominam….
E esta mentalidade mítico-ficcional emerge nos mais variados momentos, como foi o caso da tragédia da praia do Meco. Em poucas semanas se amontoaram supostas provas claras de que se tinha tratado de um rito de praxe, com alta pressão psicológica, senão, mesmo, domínio da personalidade, em que um grupo de jovens se tinha deixado manobrar totalmente por um superior hierárquico, numa prova que determinaria a passagem a novas funções.
Os indícios eram dados como provas e o quadro implicou mesmo verdadeiras reconstituições das praxes que teriam ocorrido na malfadada noite. Tudo as televisões, os jornais e os consumidores conseguiram colocar no quadro jornalístico para criar um rito iniciático de grande violência e total alheamento das capacidades de decisão.
No final do inquérito, o que fica? Exactamente um grande nada. Esse vazio de provas em relação aos ritos de praxe num limite tão grande do domínio da personalidade, apenas corresponde ao desejo que tivemos de que elas existissem.
Desejamos ardentemente, e a todo o custo, ver em todo o lado esse papão da prova iniciática, do meio e das personagens que dominam.
Incapazes de decidir, de optar e de fazer grandes mudanças, precisados de ser dominados, sonhamos que vivemos enclausurados, não percebendo que a liberdade estaria na capacidade de interrogar e de questionar o que nos colocam à frente como verdade…
Esta é a mais perigosa das alienações: já nem precisamos que nos dominem; alienamo-nos através dos desejos do nosso inconsciente.
                   
Artigo no Público, a 7 de Agosto último.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Papa, a amamentação e o barulho das crianças

É quase unânime que o papa Francisco tem tomado muitas iniciativas e posturas que, longe de alterarem os dogmas propriamente ditos, em muito beliscam as posturas e as formas instaladas que definiam o que era o ser cristão católico. Um dos campos mais interessantes encontra-se na forma mais aberta, mais leve, mas também mais na essência dos próprios rituais religiosos.
Olhemos hoje um pouco para temas que aqui na Life&Style são residentes: família e crianças. Ora, Francisco tem inovado bastante no que respeita a algumas posições mais restritivas que grande parte do clero católico tinha adoptado. O facto de o Papa ter batizado o filho de uma mãe solteira e a filha de pais casados civilmente, não se afigura como uma novidade teológica muito grande nem uma evolução (como chegou a ser dito), mas é um sinal, entre muitos outros, que o Sumo Pontífice passa para a hierarquia.
Mas Francisco tem ido ainda mais longe, especialmente quando olhamos para a forma como quer enquadrar, enquanto normalidade, as acrianças nos ritmos das práticas católicas. Numa recente cerimónia, bem ao jeito do Bergoglio que obviamente habita por baixo das vestes imaculadamente brancas do Papa, Francisco desdramatizava aquilo que tantas vezes é empolado e condenado nas celebrações católicas um pouco por todo o mundo: as crianças, na sua irrequietude e, muitas vezes, com o choro, atrapalham, desconcentram e retiram dignidade ao momento eucarístico.
Ora, o papa sugere mesmo que o coro que cantava na cerimónia se ouvirá, sim, mas as crianças não deixarão de se ouvir também, nem devem ser recriminadas por chorar, uma vez que, elas são "o coro mais belo".
Mas dentro de um certo puritanismo que nos contagiou ao longo dos séculos XIX e XX, Francisco recoloca o essencial da maternidade no centro devido, até em termos teológicos. De facto, ao longo dos tempos, as rotundas Virgens do Ó quase desapareceram dos altares, assim como as ainda mais impúdicas Virgens a amamentar. Numa religião e numa confissão que tanto se move e se inspira na dimensão da maternidade e da concepção, esta é uma ironia que demonstra o muito esforço que a Igreja fez em afastar a natureza mais humana do seu espaço mental.
Já numa entrevista, Francisco tinha desdramatizado a necessidade das mães darem de mamar às crianças durante as cerimónias papais (geralmente demoradas). Ora, várias vezes o voltou a fazer publicamente, afirmando que as mães não devem ter complexo algum em amamentar durante a cerimónia em causa, que o mais importante são mesmo as crianças e, se elas têm necessidade de comer, pois que se alimentem.
Por definição, as celebrações (religiosas, ou não) são momentos de festa, de alegria, de reunião de amigos e de pessoas que partilham uma mesma fé. A forma como o Papa desdramatiza estas duas questões, a naturalidade com que as apresenta e a alegria com que as transmite é reveladora daquilo que pretende para a Igreja. Uma Igreja que se quer mais aberta, mais acolhedora, mais festiva. Agora resta saber se o exemplo será seguido…

Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Junho passado.

sábado, 12 de julho de 2014

Percursos | Vidas | Interrogações

Quem anda pelo universo das religiões não consegue deixar de se espantar com o que de serenidade a religiosidade e a espiritualidade conseguem realizar. Pelo meu lado, em diversas e por vezes bem longas e profundas conversas, já tive oportunidade de debater, de ouvir e de argumentar com um bom grupo de líderes religiosos. A chama no olhar sempre me fascinou, mesmo quando eu não concordava com o que me diziam.
               
Talvez não seja estranho que muitos dos Textos Sagrados sejam escritos em poesia. Desde as minhas primeiras abordagens à Ilíada que me apercebi da dimensão inevitavelmente profética da poesia quando olhada a partir do referencial humano. Dela brota um sem tempo que é, obviamente, mais futuro que passado, mesmo quando ela nos fala de saudade, por exemplo. É um sem fim, um pretérito imperfeito, um continuado que precisa da voz do leitor para se consumar.
       
E parece que assim são os Textos Sagrados no que dessa tal serenidade fornecem. Entre crentes de tantas e tão diversas religiões, sinto-me ao mesmo tempo priveligiado e incompleto. É de uma vertigem assombrosa, mas deliciosa, num mesmo dia, como o de hoje, receber um e-mail de uma amiga hindu a tratar-me por "irmão", ter uma longa conversa com um mórmon sobre a sua visão cosmogónica. Pelo meio, recolhi textos de várias religiões para um evento em torno da ideia de Utopia, e recebi um e-mail de um amigo, judeu, que admiro como a poucas pessoas, dando-me um inesperado elogio por ter ajudado na edição de um texto de um humanista português.
               
Contudo, numa tantas vezes avalancha de troca de experiências e de sabes, remeto-me no fim para um lado de fora que me sabe sempre a pouco. Terminei o dia com um outro amigo, rosacruz, a reflectir sobre isto mesmo. Com benevolência, poderia dizer que é o início de uma gnose. Pelo menos, vou-me "conhecendo a mim mesmo"!
               
Pelo meio vivo momentos de completude que me fazem sentir esse sabor perfeito da serenidade, que me faz acreditar que sim, por vezes é possível ver a Luz. Há pouco tempo, da forma mais inesperada, um aluno brasileiro, evangélico, neo-pentecostal, fez-me ficar de boca aberta até hoje.
                       
Foi uma das maiores recompensas que alguma vez tive. Depois de dois dias intensos a debater o judaísmo e a desconstruir muitas das ideias feitas, a ser verdadeiramente incómodo, veio reunir comigo e, ao despedir-se, citando o Salmo 112 da Bíblia, disse-me, agradecendo: "A geração dos justos será abençoada".
               
Não consegui chorar.
Senti uma serenidade profunda, uma calma indizivel.
Obrigado.
                 
                           

terça-feira, 8 de julho de 2014

A Religião de Saramago

Mais uma vez regressei a Saramago e a algumas das suas páginas. Cada vez mais é uma leitura que se supera em degraus por vezes inesperados, como no caso do poema que transcrevo no final deste texto. 

É verdade que faleceu aquele que é um dos maiores vultos da cultura da segunda metade do século XX. Para memória futura, algumas polémicas sobre religião irão perdurar. O autor de Memorial do Convento, ateu confesso, revolucionou o olhar crítico sobre a religião e, na tradição de Garrett, Herculano e Eça, violentou fortemente todos os que gostariam que a religião passasse ao lado do olhar e da pena acutilante de quem se inquieta e quer respostas.

E foi pelo campo das respostas que com Saramago tudo se realizou. Simplesmente, Saramago fez o essencial e tão simples: se há respostas a serem procuradas, então deve-se começar com questões. E no questionar é que a religião se fere de morte.

Os questionamentos de Saramago foram ao âmago do sentir religioso. E nesse âmago encontra-se o que, para quem tem um olhar mais exigente, é do mais esquecido em religião: o Homem, os indivíduos na sua plena liberdade de opção e nos seus dramas pessoais, tantas vezes muito mais prementes que as formulações teológicas e os ditames organizadores das estruturas sociais.

Foi assim que lemos o seu In Nomine Dei, com uma profunda crítica ao tempo de guerra religiosa que invadiu a Europa Central depois da eclosão do Protestantismo. Foi muito mais, ainda, o que lemos no seu consagrado Memorial do Convento. Nesse magnífico texto, encontramos, numa envolvência de crítica constante, de inquietação dolorosa, a parceria entre a estrutura religiosa e a pessoa no que de mais individual ela tem. Parceria essa reveladora de feridas insanáveis no Portugal de setecentos, de cortes profundos em que a Inquisição e a vida de corte são espelhos de uma sociedade desencontrada.

No Evangelho segundo Jesus Cristo, temos a máxima humanização possível, que começa com a ideia de fuga da família de Jesus. Ao fugir, deixam para trás, sem aviso que possibilite semelhante sorte, todas as crianças que, assim, são sacrificadas moralmente por José. Que peso é este sobre um homem, um homónimo do escritos, que leva nos ombros, para Salvação da Humanidade, a culpa da morte de tantas crianças?

Há menos tempo, com Caim, Saramago lançava-se na complexa arquitectura de (d)escrever o Homem na busca do confronto com Deus. Caim, o homem pleno de Homem, procurou até ao ponto da aniquilação da Humanidade, o choque com o Criador. A Criatura anulou a Criação do Criador.

O seu percurso estava preenchido e definido. A sua "teologia" estava montada e explicada.

Como normalmente se diz, morreu em paz. Na sua Paz. Uma paz que é inquieta. Inquietude.

A nós, fica a leitura, para que aprendamos a conhecer o que é ser inquieto.

Que se leia o excepcional "Aprendamos o rito", de José Saramago

Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Um falso Padre no púlpito


Já aconteceu muitas vezes, mas por estes dias volta a ser notícia um falso Padre que enganou uma comunidade paroquial durante largo tempo. Para além da dimensão ética mas, acima de tudo, judicial, onde surgem roubos, dívidas e dinheiros em diversas variantes, há o lado religioso, o que de mental isso implica nas populações, e o que de canónico se encontra preparado pela (normalmente designada) Igreja Católica, como resposta para situações semelhantes a  esta.
Do lado do crente e a da comunidade religiosa, uma situação desta natureza é um profundo e rude golpe. A prática, a pertença e a identidade religiosa resulta de um acto de dádiva à comunidade em que cada crente como que se abre, se entrega. O pároco é o garante dessa teia de relações onde cada um se expõe, muitas vezes mais que perante a família, porque está exactamente dentro de um grupo onde há um patamar de confiança que apenas o religioso garante – o Padre é, no nosso imaginário, uma figura de isenção devido ao segredo da confissão: numa comunidade religiosa, o Padre sabe do que mais ninguém sabe.
Portanto, acordar um dia com a descoberta de que o pároco a quem tantos entregaram os seus segredos, contaram as suas angústias, pediram conselho, afinal não o era de verdade, torna-se inevitavelmente um grande choque que, em muitos casos, poderá nunca mais ser superado na relação com a figura que deveria ser, pelo entendimento católico, o mais fácil elo na relação com Deus – no universo Protestante o Pastor tem, radicalmente, um papel totalmente diferente pois está liberto desse “ónus” psicológico que é o de aceder a níveis de intimidade que a confissão implica, para além da própria noção de “pastor” que em nada toma a dimensão sacralizada do “sacerdote”.
Contudo, para além deste lado que leva mais para a envolvência que a direcção religiosa implica, temos que olhar para um outro lado da relação pároco / paroquiano: os sacramentos. E neste campo, talvez o mais importante para uma larga fatia das pessoas de facto mais preocupadas com a prática religiosa regular, com uma forte identificação com essas metas e grandes momentos que são os sacramentos, a Igreja católica fez um percurso em muito devedor à experiencia milenar da relação entre a ortodoxia e as margens, muitas vezes até as consideradas heréticas.
De facto, a Igreja Católica em muito remeteu a validade dos sacramentos para o lado da adesão incondicional, plena e imediata, do crente ao que os gestos/símbolos e palavras significam. Portanto, por exemplo, se um baptismo for realizado por um falso Padre, isso não implica a nulidade desse sacramento, a validade não depende do celebrante mas de quem o recebe. Se quem o pediu – porque é isso que o rito diz – o fez de livre vontade, consciente do que fazia, então a Igreja Católica aceita esse baptismo como válido, pois o Padre funciona apenas como elo da transmissão de algo que não era dele.
Nestes casos, obviamente, o maior problema religioso joga-se na confiança que uma comunidade deixa de ter na autoridade eclesiástica, seja o Padre que a pastoreia, seja o Bispo que não detectou esta situação. Uma comunidade onde se deu uma situação destas demorará muito tempo a dar-se na abertura, na espontaneidade e na verdadeira entrega que a dimensão católica implica na triangulação entre Deus / Sacerdote / Crente.

com Fernando Catarino
artigo publicado na nossa secção «Religião na Cidade», na Life&Style do Público, a 9 de Abril de 2014.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Fazer da memória um tribunal de anacronismos. A propósito da memória judaica do Porto e de uma inexistente polémica

Muitos autores nos têm advertido do sentido pernicioso que o olhar para o passado potencialmente apresenta. Entre eles, Fernando Catroga tem trazido ao debate aspectos de mentalidade que se podem colocar debaixo do largo e lato chapéu das influências do judeu-cristianismo enquanto visão da construção do devir histórico.  Olhamos para o fluir do tempo através das categorias moralizadas de Princípio ou de Fim, que se materializam nas de legitimidade, messianismo, escatologia ou punição. Estas categorias são constantes e enformam, mesmo que inconscientemente, um olhar que tantas vezes apresentamos como pretensamente isento, natural, óbvio.

A forma como lidamos, enquanto herdeiros de vitórias militares ou de limpezas étnicas ou religiosas, é obviamente complexa e prenhe de contradições. O nosso olhar para a memória e para as influencias culturais de muçulmanos ou judeus, extintos de Portugal por políticas e acções com as quais hoje dificilmente nos identificaríamos, ganha foros de reconfiguração da identidade colectiva que, sem anular uma identidade cristã, abre portas para redescobertas, pedidos de perdão e tomada de consciência de que, por exemplo, quase nada sabemos sobre essa referida herança porque nunca criámos um lugar digno para os estudos judaicos ou islâmicos.

Hoje, 40 anos depois de última revolução que nos reconfigurou nessa herança de perseguição religiosa e monolitismo cultural, damos passos largos nas políticas, nos estudos, na descoberta de como eram grandes e importantes as comunidades judaica e islâmica portuguesa no século XV - como é impossível compreender os Descobrimentos que nos enchem o ego colectivo sem perceber a cultura e a ciência de judeus e de muçulmanos!

Mas, por vezes, somos assaltados por notícias de acções que em tudo parecem querer destruir este novo paradigma de relação com a nossa própria identidade. E digo assaltados por que estes actos nos roubam a dignidade de cidadãos com direito à memória. É neste quadro que integro a recente polémica em torno das declarações de um Rabi que, sendo líder religioso da comunidade do Porto, vive parte significativa do tempo em Israel, parecendo totalmente alheado e desfasado com o que se passou em Portugal nos últimos 40 anos.

Seguindo a sua lógica, concluímos que somos irremediavelmente inconciliáveis, que somos, por natureza, populações e culturas separadas, que mais vale manter essa separação que procurar plataformas de diálogo. Determinados a estar separados, apenas nos resta a guerrilha e atiçar um fogo mesmo quando ele teima em se apagar.

O mais irónico deste episódio é isso mesmo, o anacronismo das afirmações. Ao longo das últimas décadas tivemos uma mudança radical de actos que foi, acima de tudo, de  consciências. O Presidente da República Mário Soares pediu desculpa em nome de Portugal, o Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo, num gesto também pleno de significado, seguiu esses mesmos passos, palavras e actos. O mundo universitário começou a dar lugar à memória sefardita. As comunidades locais, durante séculos perseguidas, dizimadas, mortas, redescobriram essa herança riquíssima de que não se querem afastar, antes pelo contrário, cada vez mais a integram na sua identidade. As autoridades judaicas e as autoridades do Estado de Israel unem-se nestes actos e nestas dinâmicas, valorizando este trabalho em conjunto.

Hoje, depois de todo este caminho, um rabi, alheado de tudo isto, vem dizer que fazer um museu judaico no Porto é um crime à memória dos próprios judeus… Incompreensível como com poucas palavras se tenta destruir o trabalho de anos de diálogo e redescoberta. É compreensível que certos sectores enquistados numa visão fundamentalista da religião não se revejam nos actos que juntam a uma mesma mesa, num mesmo lugar ou numa mesma instituição, gente de diferentes credos e identidades. Estão desfasados do mundo e do tempo, mas todos os grupos religiosos apresentam franjas desta natureza que, infelizmente, com os seus discursos inflamados e cheios de sensacionalismo, determinam a atenção tantas vezes superficial dos órgãos de comunicação, cada vez mais numa ávida procura de sangue e de discórdia.

Contudo, o que de pior trazem ao mundo é a negação do direito à dignidade dos que se sentem herdeiros, continuadores, familiares, dos que durante séculos foram perseguidos, espoliados, mortos. Fosse apenas um e já faria sentido. Mas não, são largos os milhares que todos os anos procuram os vestígios judaicos portugueses para recordar o seu passado enquanto identidade colectiva, enquanto herdeiros dos que, iguais a todos nós, tiveram de fugir ou foram mortos por questões de consciência.

E é essa dimensão de consciência, uma tomada activa e sentida, que é negada pelos escassos que hoje reduzem o sentir de tantos a uma simples afirmação da sua prepotência enquistada no comodismo fácil de afirmar frases bombásticas que impossibilitam o diálogo, fomentam ressentimentos antigos e dão, isso sim, os 15 minutos de notoriedade.

Mas que triste notoriedade.
               

sábado, 1 de março de 2014

Festas de Loucos e Carnavais, com Maquiavel

Recuperando um poema de Maquiavel, ou as Festas de Loucos e Carnavais

Pelo início da década de noventa do século passado, veio parar às minhas mãos a edição portuguesa do livro Festas de Loucos e Carnavais de Jacques Heers (Lisboa, D. Quixote, 1987). Para mim este livro foi um verdadeiro “balde de água fria”. Com a leitura escorreita deste texto, embrenhei-me numa obra onde não encontrava um trabalho feito com base nas típicas definições de historiografia.
Festas de Loucos e Carnavais tanto era um livro sobre História das Mentalidades, sobre aspectos de Cultura e de Sociedade, como de Ideias ou, para meu espanto, era também um excepcional livro de História das Religiões.
Com esta obra de Heers, percebi que uma visão compartimentada da História pode ser mais confortável, pode ajudar-nos a criar e a definir melhor as ideias e os conceitos, mas faz-nos perder parte do essencial. É que, tal como o Carnaval, toda e qualquer actividade humana não se esgota numa das vertentes com que catalogámos a nossa vida nos dois últimos séculos. Não há social sem religioso, não há ideias sem cultura, tal como não há mentalidades sem política e normas que nos organizem.
E nesta transversalidade que é a imagem da complexidade que Edgar Morin tão bem trabalha, não deixo de frequentemente me lembrar do meu espanto quando há uns anos, cantava eu num coro em Lisboa, o saudoso Coral Paradoxal, me colocaram nas mãos uma pauta que indicava que o poema era de…. Niccoló Machiavelli! Mas mais, o poema era sobre o Carnaval!
De facto, com música de Alessandro Cappinus, lá lançámos mãos á obra que fora escrita para o carnaval veneziano de 1502. De' diavoli iscacciati di cielo era a obra que me apaixonaria e me faria recriar uma outra figura por trás do autor d’O Princípe.
E como era, e é, bastante actual, este poema ainda num dialecto arcaico do que hoje chamamos italiano. O título indica-nos que nestes dias os demónios foram empurrados, soltos, do céu. Vieram até nós, que já não somos “beati”.
O caos da quadra era vivido mas, ao mesmo tempo, cantado como algo negativo. Era negativo, mas vivia-se. A Quaresma que no dia seguinte se abria implicava já muita mortificação, jejuns, confissões e medos. Afinal, quando se começa a festejar fortemente o Carnaval deve ter sido pela época em que o Purgatório, os Anos Santos e toda a restante panóplia de espartilhos se consolidaram no mundo cristão, isto é, pelos séculos XI a XIII.
Nesta quadra, aqui ficam dois poemas de Maquiavel, ambos feitos para o Carnaval.

De' diavoli iscacciati di cielo

Già fummo, or non siam più,
spirti beati; per la superbia nostra
siàno stati dal ciel tutti scacciati;
E in questa città vostra
abbiàn preso il governo,
perché qui si dimostra
confusion, dolor più che in inferno.

E fame e guerra e sangue e diaccio e foco,
sopra ciascun mortale,
abbiàn messo nel mondo a poco a poco;
E ’n questo carnovale
vegnàno a star con voi,
perché di ciascun male
fatti siàno e saren principio noi.

Plutone è questo, e Proserpina è quella
ch’a lato se gli posa;
Donna sopra ogni donna al mondo bella.
Amor vince ogni cosa;
Però vinse costui,
che mai non si riposa,
perch’ognun faccia quel ch’ha fatto lui.

Ogni contento e scontento d’amore
da noi è generato,
e ’l pianto e ’l riso e ’l diletto e ’l dolore,
chi fussi innamorato,
segua il nostro volere
e sarà contentato;
Perché d’ogni mal far pigliàn piacere.



Degli spiriti beati

Spirti beati siàno,
che da’ celesti scanni
siàn qui venuti a dimostrarci in terra,
poscia che noi veggiàno
il mondo in tanti affanni
e per lieve cagion sì crudel guerra;
e mostrar a chi erra,
sì come al Signor nostro al tutto piace
che si ponghin giù l’arme e stieno in pace.

L’empio e crudel martoro
de’ miseri mortali,
il lungo strazio e ’nrimediabil danno,
il pianto di costoro
per li infiniti mali
che giorno e notte lamentar gli fanno,
con singulti e affanno,
con alte voci e dolorose strida,
ciascun per sé merzè domanda e grida.

Questo a Dio non è grato,
né puote essere ancora
a chiunche tien d’umanitate un segno;
per questo ci ha mandato,
che vi dimostriam ora
quanto sie l’ira sua giusta e lo sdegno:
poiché vede il suo regno
mancar a poco a poco, e la sua gregge,
se pe ’l nuovo pastor non si corregge.

Tant’è grande la sete
di guastar quel paese
ch’a tutto il mondo diè le leggi in pria,
che voi non v’accorgete
che le vostre contese
a li nimici vostri aprin la via.
Il signor di Turchia
aguzza l’armi, e tutto par ch’avvampi
per inundar i vostri dolci campi.

Dunque, alzate le mani
contr’al crudel nemico,
soccorrendo a le vostre gente afflitte;
deponete, cristiani,
questo vostro odio antico,
e contro a lui voltate l’armi invitte;
altrimenti, interditte
le forze usate vi saran dal cielo,
sendo in voi spento di pietate il zelo.

Dipàrtasi il timore,
nimicizie e rancori,
avarizia, superbia e crudeltade;
risurga in voi l’amore
de’ giusti e veri onori;
e torni il mondo a quella prima etade;
così vi fien le strade
del ciel aperte a la beata gente,
né saran di virtù le fiamme spente.



quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Os dois “Budas” de Nova Iorque

No chamado Dia Internacional da Paz, recupero um texto de 2001. Contexto: 11 Setembro.
A reflexão mantem-se actual. Com muita necessidade de se ser actuante.

Os dois “Budas” de Nova Iorque

Com uma eficácia maior que a antes vista aquando da destruição dos dois Budas em Badiyan, as Twin Towers de Nova Iorque ruíram com a simplicidade de apenas um golpe cada, sem falha de pontaria alguma, sem necessidade de utilizar segundas cargas de explosivos.
Alguns meses medeiam entre as duas destruições. Em ambos os casos os alvos foram marcas patrimoniais de um ocidente que define regras e as aplica aos restantes. Também cá foram destruídos templos islâmicos aquando da chamada «Reconquista Cristã» - a Sé de Lisboa terá sido construída em cima de uma Mesquita previamente arrasada … o que de património aí se perdeu, e o que de fundamentalismo se afirmou nesse acto – mas isso não interessa para a História.
O que de comum existe nas duas destruições, a de Badiyan e a de Nova Iorque, é a afronta ao ocidente da materialidade - os budistas têm plena consciência que para a sua doutrina a existência das duas estátuas em nada significa, ao contrário, numa visão diletante e quase coleccionista, o ocidente, auto-proclamado de civilizado, chorou a irreparável perda patrimonial, sem se aperceber que essa irreparável perda patrimonial efectiva do Budismo reside na incessante luta contra o seu centro religioso, o Tibete: sem religiões livres, o património da UNESCO ficará resumido a simples peças, sem conteúdo, sem vivenciação, simples imagem e descrição nos roteiros turísticos.
Em ambos os casos ficou o vazio em seus lugares. Num, o lugar escavado na rocha milenar em que foram esculpidos os dois Budas; Noutro, o espaço correspondente ao reticulado da cidade complexa onde se encontravam os edifícios emblemáticos. Em ambos o imenso vazio que não mais se poderá ocupar.
Por mais estranho que possa parecer, a luta, em ambos os casos, não é religiosa. É no campo da crença que a afronta se afirma, não no campo do corpus fundamental do fenómeno religioso.
É que a crença não é nem nunca foi religiosa; Esta é a aferição essencial a fazer. A crença radica naquilo que de mais baixo tem o espírito humano: o seguidismo cego, autista, nulo de capacidade cognitiva alguma. Alterando as palavras do poeta Eles não sabem nem sonham que a crença comanda a vida … A Religião, na sua dimensão inevitavelmente teológica, não é o ópio do povo, a crendice é que ocupa esse lugar proeminente nas sociedades humanas, religiosas ou não.
A crença, quando religiosa, não toma qualquer conteúdo teológico – a teologia, por mais simples e simplista que possa ser, implica sempre, tal como qualquer actividade intelectual, uma atitude cognitiva. A crença não é activa na cognição, no esclarecimento de si. A crença move-se na exacta medida em que aponta o outro como seu diferente, seu inimigo para a sua plena concretização.
A crença é, sim, um instinto e uma identidade. Ao ser um instinto implica o seu aprofundamento até às últimas consequências sem que haja alguma capacidade argumentativa contrária; ao ser uma identidade alimenta-se da fraqueza de todos os restantes factores de identidade – quando tudo se perde, a crença comum preenche-se com os sentidos perdidos nos restantes campos (territorialidade, administração e policiamento, capacidade bélica, afirmação económica).
É pela crença num capitalismo desmedido, é pela crença num islão fundamentalista, é pela crença num catolicismo inquisitorial, é pela crença num ideal de cruzada, é pela crença numa visão racista que se dá a vida e que se tira a vida.
Texto publicado na revista Viragem, nº 39.