Quem anda pelo universo das religiões não consegue deixar de se espantar com o que de serenidade a religiosidade e a espiritualidade conseguem realizar. Pelo meu lado, em diversas e por vezes bem longas e profundas conversas, já tive oportunidade de debater, de ouvir e de argumentar com um bom grupo de líderes religiosos. A chama no olhar sempre me fascinou, mesmo quando eu não concordava com o que me diziam.
Talvez não seja estranho que muitos dos Textos Sagrados sejam escritos em poesia. Desde as minhas primeiras abordagens à Ilíada que me apercebi da dimensão inevitavelmente profética da poesia quando olhada a partir do referencial humano. Dela brota um sem tempo que é, obviamente, mais futuro que passado, mesmo quando ela nos fala de saudade, por exemplo. É um sem fim, um pretérito imperfeito, um continuado que precisa da voz do leitor para se consumar.
E parece que assim são os Textos Sagrados no que dessa tal serenidade fornecem. Entre crentes de tantas e tão diversas religiões, sinto-me ao mesmo tempo priveligiado e incompleto. É de uma vertigem assombrosa, mas deliciosa, num mesmo dia, como o de hoje, receber um e-mail de uma amiga hindu a tratar-me por "irmão", ter uma longa conversa com um mórmon sobre a sua visão cosmogónica. Pelo meio, recolhi textos de várias religiões para um evento em torno da ideia de Utopia, e recebi um e-mail de um amigo, judeu, que admiro como a poucas pessoas, dando-me um inesperado elogio por ter ajudado na edição de um texto de um humanista português.
Contudo, numa tantas vezes avalancha de troca de experiências e de sabes, remeto-me no fim para um lado de fora que me sabe sempre a pouco. Terminei o dia com um outro amigo, rosacruz, a reflectir sobre isto mesmo. Com benevolência, poderia dizer que é o início de uma gnose. Pelo menos, vou-me "conhecendo a mim mesmo"!
Pelo meio vivo momentos de completude que me fazem sentir esse sabor perfeito da serenidade, que me faz acreditar que sim, por vezes é possível ver a Luz. Há pouco tempo, da forma mais inesperada, um aluno brasileiro, evangélico, neo-pentecostal, fez-me ficar de boca aberta até hoje.
Foi uma das maiores recompensas que alguma vez tive. Depois de dois dias intensos a debater o judaísmo e a desconstruir muitas das ideias feitas, a ser verdadeiramente incómodo, veio reunir comigo e, ao despedir-se, citando o Salmo 112 da Bíblia, disse-me, agradecendo: "A geração dos justos será abençoada".
Não consegui chorar.
Senti uma serenidade profunda, uma calma indizivel.
Obrigado.
sábado, 12 de julho de 2014
terça-feira, 8 de julho de 2014
A Religião de Saramago
Mais uma vez
regressei a Saramago e a algumas das suas páginas. Cada vez mais é uma leitura
que se supera em degraus por vezes inesperados, como no caso do poema que
transcrevo no final deste texto.
É verdade que
faleceu aquele que é um dos maiores vultos da cultura da segunda metade do
século XX. Para memória futura, algumas polémicas sobre religião irão perdurar.
O autor de Memorial do Convento, ateu confesso, revolucionou o olhar crítico
sobre a religião e, na tradição de Garrett, Herculano e Eça, violentou
fortemente todos os que gostariam que a religião passasse ao lado do olhar e da
pena acutilante de quem se inquieta e quer respostas.
E foi pelo campo
das respostas que com Saramago tudo se realizou. Simplesmente, Saramago fez o
essencial e tão simples: se há respostas a serem procuradas, então deve-se
começar com questões. E no questionar é que a religião se fere de morte.
Os questionamentos
de Saramago foram ao âmago do sentir religioso. E nesse âmago encontra-se o
que, para quem tem um olhar mais exigente, é do mais esquecido em religião: o
Homem, os indivíduos na sua plena liberdade de opção e nos seus dramas
pessoais, tantas vezes muito mais prementes que as formulações teológicas e os
ditames organizadores das estruturas sociais.
Foi assim que lemos
o seu In Nomine Dei, com uma profunda crítica ao tempo de guerra religiosa que
invadiu a Europa Central depois da eclosão do Protestantismo. Foi muito mais,
ainda, o que lemos no seu consagrado Memorial do Convento. Nesse magnífico texto,
encontramos, numa envolvência de crítica constante, de inquietação dolorosa, a
parceria entre a estrutura religiosa e a pessoa no que de mais individual ela
tem. Parceria essa reveladora de feridas insanáveis no Portugal de setecentos,
de cortes profundos em que a Inquisição e a vida de corte são espelhos de uma
sociedade desencontrada.
No Evangelho
segundo Jesus Cristo, temos a máxima humanização possível, que começa com a
ideia de fuga da família de Jesus. Ao fugir, deixam para trás, sem aviso que
possibilite semelhante sorte, todas as crianças que, assim, são sacrificadas
moralmente por José. Que peso é este sobre um homem, um homónimo do escritos,
que leva nos ombros, para Salvação da Humanidade, a culpa da morte de tantas
crianças?
Há menos tempo, com
Caim, Saramago lançava-se na complexa arquitectura de (d)escrever o Homem na
busca do confronto com Deus. Caim, o homem pleno de Homem, procurou até ao
ponto da aniquilação da Humanidade, o choque com o Criador. A Criatura anulou a
Criação do Criador.
O seu percurso
estava preenchido e definido. A sua "teologia" estava montada e
explicada.
Como normalmente se
diz, morreu em paz. Na sua Paz. Uma paz que é inquieta. Inquietude.
A nós, fica a
leitura, para que aprendamos a conhecer o que é ser inquieto.
Que se leia o
excepcional "Aprendamos o rito", de José Saramago
Põe na mesa a
toalha adamascada,
Traz as rosas mais
frescas do jardim,
Deita o vinho no
copo, corta o pão,
Com a faca de prata
e de marfim.
Alguém se veio
sentar à tua mesa,
Alguém a quem não
vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no
regaço, não perguntes:
Nas perguntas que
fazes é que mentes.
Prova depois o
vinho, come o pão,
Rasga a palma da
mão no caule agudo,
Leva as rosas à
fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual
e sabes tudo.
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