segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Circuncisão: O Estado na definição dos deveres dos pais

O início deste ano de 2014 parece estar a consolidar uma polémica que começara já no ano anterior em torno da circuncisão por motivos religiosos. A polémica estalara na Alemanha, mas também parece correr na Dinamarca e noutros países escandinavos que já apresentaram recomendações contra esta prática no Conselho da Europa.
A base das propostas que defendem a proibição de tal prática reside na valorização dos direitos da criança em relação à manutenção das práticas das tradições religiosas. Neste caso, o Judaísmo e o Islão são os alvos desta onda.
Obviamente que esse campo do Direito deve ser invocado. Depois de milhares de anos a menosprezar os menores, tratando-os quase sempre de forma sub-humana, fica “bem” à Europa finalmente colocar as crianças num lugar de direitos inquestionáveis.
Contudo, esta postura implica uma certa inversão na responsabilidade educativa e de identidade das crianças. Quais os direitos e os deveres da progenitura? Onde termina e como se define o que de espiritual os pais podem transferir para os filhos como parte de uma identidade colectiva, e quais os limites para as marcas que esses actos podem implicar?
Para a tradição bíblica, seguida por judeus e por muçulmanos, a circuncisão é a marca da primeira grande aliança entre Deus e o seu povo, na pessoa de Abraão. Pode-se encarra, sem esforço, que a circuncisão é a principal marca de identidade ritual nestas religiões. Mais que identidade religiosa, é identidade cultural e sentido de irmanação com os antepassados e o que eles representam.
De facto, ao retirar o prepúcio, os pais estão a efectivar na criação, a repetir o gesto primordial, da aliança que a sua religião representa. Daqui se percebe que a circuncisão é um acto central e nunca se pode comparar com a mutilação genital feminina que em nenhuma religião tem foro minimamente semelhante - para além de a circuncisão não minimizar ou retirar nenhuma capacidade ao homem, ao passo que o mesmo não se aplica no caso feminino.
Para os pais, circuncidar é, sim, tornar sagrado aquele bebé, integrando-o nos laços de uma aliança primordial. E tornar sagrado, no sentido primeiro da expressão, é sacrificar – sacre facere. É um sacrifício porque torna sagrado.
É claro que a nossa sociedade está numa deriva de protecção à criança que deve equacionar os limites da acção dos pais a muitos níveis. Mas a eventual proibição de actos milenares que, feitos segundo as regras estabelecidas há séculos, em nada fazem perigar a saúde da criança, nem lhe retiram capacidades na vida adulta, é imagem de um autoritarismo que nega em absoluto o papel e o lugar dos pais na passagem da sua cultura e identidade.
Mais, este universo de proibições, as do campo religioso, acabam sempre por definir muito mais que o simples acto que procuram banir. Neste caso concreto, são dois os grupos religiosos abrangidos: judeus e muçulmanos.
Num tempo em que tantos movimentos extremistas se revigoram na Europa com vitórias eleitorias que nos devem deixar alarmados, proibir a circuncisão tem um nada leve tom a déjà vu.

O que proibiremos a seguir?
           

Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Maio passado.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um regresso às praias do Meco - ou, o fascínio (mórbido) pelo iniciático

No meu entendimento, obviamente tolhido pelo defeito profissional, o “caso das praxes no Meco” trouxe à face visível da nossa cultura popular o lugar que os rituais iniciáticos detêm na nossa mitologia urbana. Enquanto historiador das religiões, tenho assistido a um constante fascínio que tudo o que é “iniciático” tem tido, de forma crescente, no nosso imaginário colectivo.
Dos “pactos de sangue”, aos Iluminatti de vários romances e filmes; das recorrentes teorias da conspiração, à existência de uma “ordem mundial” escondida; do efectivo grande crescimento que as ordens iniciáticas mostram hoje (das mais antigas às mais recentes e menos ligadas a alguma tradição), às constantes notícias que os nossos media veiculam sobre os poderes da maçonaria; muito no nosso dia-a-dia gira em torno do medo, muitas vezes do pânico, desses poderes escondidos que pretensamente nos manipulam.
De facto, num fascínio que faz vender livros, esgotar salas de cinema e vender jornais, cimentou-se plenamente essa ideia que nos diz que há sempre um “big brother watching you”… Mais, esse “big” em nada é “irmão”, fraterno, apenas deseja oprimir, esgotar recursos, sugar tudo à sua volta e dominar o mundo, qual regresso das teorias mais aberrantes do século XIX que desaguaram nos fascismos do século XX – com os medos colectivos e irracionais cimentados em obras como o Protocolos dos Sábios de Sião, regou-se o ódio que terminaria no Holocausto.
Hoje, muito longe de se buscarem responsabilidades no indivíduo que é cada um de nós, segue-se o caminho fácil de um bode expiatório que, no melhor sentido conspiracionista, não se conhece, não se vê, operando por poderes de controle emocional e por juramentos de um poder tremendo. É a porta para o “eles” que pulula nas conversas de café.
Seja a Maçonaria ou o Opus Dei, realidades existentes mas totalmente desconhecidas para quem faz juízos rápidos, ou os conteúdos dos romances de Dan Brown, tudo se gere emocionalmente no mesmo patamar de realidade, confundindo o que não é confundível. Vive-se a realidade muitas vezes como se fosse um longo romance em que, num sentido telenovelístico, há sempre um lado oculto, uma maquinação, uma dimensão escondida. Sim, porque “eles” estão sempre aí! Especialmente quando não se vislumbram… não os ver é prova de que nos observam e dominam….
E esta mentalidade mítico-ficcional emerge nos mais variados momentos, como foi o caso da tragédia da praia do Meco. Em poucas semanas se amontoaram supostas provas claras de que se tinha tratado de um rito de praxe, com alta pressão psicológica, senão, mesmo, domínio da personalidade, em que um grupo de jovens se tinha deixado manobrar totalmente por um superior hierárquico, numa prova que determinaria a passagem a novas funções.
Os indícios eram dados como provas e o quadro implicou mesmo verdadeiras reconstituições das praxes que teriam ocorrido na malfadada noite. Tudo as televisões, os jornais e os consumidores conseguiram colocar no quadro jornalístico para criar um rito iniciático de grande violência e total alheamento das capacidades de decisão.
No final do inquérito, o que fica? Exactamente um grande nada. Esse vazio de provas em relação aos ritos de praxe num limite tão grande do domínio da personalidade, apenas corresponde ao desejo que tivemos de que elas existissem.
Desejamos ardentemente, e a todo o custo, ver em todo o lado esse papão da prova iniciática, do meio e das personagens que dominam.
Incapazes de decidir, de optar e de fazer grandes mudanças, precisados de ser dominados, sonhamos que vivemos enclausurados, não percebendo que a liberdade estaria na capacidade de interrogar e de questionar o que nos colocam à frente como verdade…
Esta é a mais perigosa das alienações: já nem precisamos que nos dominem; alienamo-nos através dos desejos do nosso inconsciente.
                   
Artigo no Público, a 7 de Agosto último.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Papa, a amamentação e o barulho das crianças

É quase unânime que o papa Francisco tem tomado muitas iniciativas e posturas que, longe de alterarem os dogmas propriamente ditos, em muito beliscam as posturas e as formas instaladas que definiam o que era o ser cristão católico. Um dos campos mais interessantes encontra-se na forma mais aberta, mais leve, mas também mais na essência dos próprios rituais religiosos.
Olhemos hoje um pouco para temas que aqui na Life&Style são residentes: família e crianças. Ora, Francisco tem inovado bastante no que respeita a algumas posições mais restritivas que grande parte do clero católico tinha adoptado. O facto de o Papa ter batizado o filho de uma mãe solteira e a filha de pais casados civilmente, não se afigura como uma novidade teológica muito grande nem uma evolução (como chegou a ser dito), mas é um sinal, entre muitos outros, que o Sumo Pontífice passa para a hierarquia.
Mas Francisco tem ido ainda mais longe, especialmente quando olhamos para a forma como quer enquadrar, enquanto normalidade, as acrianças nos ritmos das práticas católicas. Numa recente cerimónia, bem ao jeito do Bergoglio que obviamente habita por baixo das vestes imaculadamente brancas do Papa, Francisco desdramatizava aquilo que tantas vezes é empolado e condenado nas celebrações católicas um pouco por todo o mundo: as crianças, na sua irrequietude e, muitas vezes, com o choro, atrapalham, desconcentram e retiram dignidade ao momento eucarístico.
Ora, o papa sugere mesmo que o coro que cantava na cerimónia se ouvirá, sim, mas as crianças não deixarão de se ouvir também, nem devem ser recriminadas por chorar, uma vez que, elas são "o coro mais belo".
Mas dentro de um certo puritanismo que nos contagiou ao longo dos séculos XIX e XX, Francisco recoloca o essencial da maternidade no centro devido, até em termos teológicos. De facto, ao longo dos tempos, as rotundas Virgens do Ó quase desapareceram dos altares, assim como as ainda mais impúdicas Virgens a amamentar. Numa religião e numa confissão que tanto se move e se inspira na dimensão da maternidade e da concepção, esta é uma ironia que demonstra o muito esforço que a Igreja fez em afastar a natureza mais humana do seu espaço mental.
Já numa entrevista, Francisco tinha desdramatizado a necessidade das mães darem de mamar às crianças durante as cerimónias papais (geralmente demoradas). Ora, várias vezes o voltou a fazer publicamente, afirmando que as mães não devem ter complexo algum em amamentar durante a cerimónia em causa, que o mais importante são mesmo as crianças e, se elas têm necessidade de comer, pois que se alimentem.
Por definição, as celebrações (religiosas, ou não) são momentos de festa, de alegria, de reunião de amigos e de pessoas que partilham uma mesma fé. A forma como o Papa desdramatiza estas duas questões, a naturalidade com que as apresenta e a alegria com que as transmite é reveladora daquilo que pretende para a Igreja. Uma Igreja que se quer mais aberta, mais acolhedora, mais festiva. Agora resta saber se o exemplo será seguido…

Com Fernando Catarino, na Life&Style do Público, a 6 de Junho passado.