sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A construção na adversidade, ou a homenagem a José Eduardo Franco

Para uma geração, hoje é um dia feliz. Ironicamente feliz. Mas sim, muito feliz!
            
José Eduardo Franco recebe hoje a Medalha de Mérito Cultural, atribuída pelo Estado Português. Será o mais jovem cidadão a receber este galardão.
          
Para uma geração, a que hoje é tantas vezes designada como a mais habilitada de todas, a mais instruída, a mais capacitada, o Eduardo Franco é sinónimo de trabalho, de esforço, de capacidade, de empreendedorismo em quadros muitas vezes adversos, mas sempre com uma força e um sentido de missão que o levou a superar todos os obstáculos, mesmo aqueles lançados por quem teria todo o dever de o acolher, acarinhar e dar apoio.
       
Eduardo Franco fez todo um percurso, comum na minha geração, de bolsas e de projectos. Comeu o pão que o diabo amassou com milhares e milhares de horas voluntárias em projectos de outrem. Deu o seu melhor em projectos que idealizou e dirigiu, e onde foi sempre o maior e inqualificável motor. Foi o responsável por muitos elementos altamente honrosos em relatórios de actividades de muitas instituições que, sem ele, pouco ou nada teriam para apresentar.
                  
E, contudo, após um punhado de grandes encontros científicos internacionais marcantes, após vários projectos de investigação onde conseguiu reunir dezenas de investigadores e fundos imensos, após, dezenas e dezenas de livros publicados, o Eduardo Franco foi "apenas" mais um de nós na precaridade que nunca tiveram a coragem de lhe retirar, como se essa dimensão de inovação e de capacidade de trabalho fosse uma mácula, uma culpa, mesmo, que transportava por ser dinâmico e empreendedor, por não se resignar.
          
O Eduardo Franco tem como maior prova da sua capacidade e generosidade o desprezo a que é votado pelos ilustres da parte mais bafienta da nossa academia que continuam a achar que o Saber deve estra fechado e retido entre paredes onde apenas é gerido pelas políticas de progressão na carreira académica ou por simples mecanismos de tutela do poder simbólico que a cultura permite. Não, não são apenas alguns velhos do restelo, nem mesmo velhos, apenas. É algo que nos remete para uma passividade que engorda os que não se movem e os que não arriscam.
              
O mais irónico é ver essa elite académica, parada, estática, tendente para a quietude, a ter de aplaudir um homem que é a negação do estar parado. O Eduardo Franco concebe a cultura como uma realidade transversal a toda a sociedade e, em sentido de retorno, a ela regressando para a alimentar. A Cultura, afinal, só faz sentido se for direcionada para todos os grupos sociais. Só assim uma identidade se pode construir no futuro através da análise do passado. Tudo o resto não acaba por ser muito mais que um exercício de ego entre iluminados que numa mecânica autofágica se congratulam uns aos outros, esquecendo que há mundo para lá das paredes da sua sala de aula.
                
Felizmente, temos generosidades como a do Eduardo Franco. Uma generosidade de uma cultura aberta, que olha para a produção cultural como uma realidade de todos e para todos, sorridente e não cabisbaixa, empenhada no futuro e não resguardada nas paredes poeirentas da academia onde o estatuto corresponde a autoridade, negando a mais elementar natureza do trabalho científico: o debate aberto para a superação de ideias.
            
Felizmente, temos o Eduardo Franco para nos mostrar algo que, no campo das Humanidades, até nos poderia passar ao lado: afinal, e recompondo a frase batida mas muito actual, a universidade até pode iluminar o Povo antes de arder!
           
É da mais elementar justiça este acto de atribuição desta medalha. Afinal, a existir, Ele escreve direito por linhas tortas!
               
O maior abraço!
Continua a trabalhar.
Continua como és.

domingo, 13 de setembro de 2015

"Será que todos são todos?" sim, todos são O TODOS

O fim de tarde de domingo arrisca-se muitas vezes a ser como que um não-lugar, um já-não-fim-de-semana, já a pensar em segunda-feira, mas sem ainda o ser. Não me afligem os regressos aos afazeres da semana, mas gosto de marcar esse fim de fim-de-semana de forma significativa, com algo que me preencha. Felizmente, hoje isso aconteceu, teve lugar na igreja do Hospital dos Capuchos, o antigo convento dos franciscanos na hoje chamada "colina dos hospitais".
                
E este fim de tarde foi tão mais significativo porque vivemos tempos brutalmente conturbados, sem que a maioria de nós dê minimamente por isso, ocupados que estamos na sobre-vivência, incapazes de viver, quer os gestos magníficos de uma boa música, quer os indícios imensos de fim de linha, de grande mudança de tempos que se aproxima.
                 
Encerramos fronteiras, construímos muros, e fechamos uma Europa como se ela pudesse estar fechada, ou mesmo, como se ela, tentando-se fechar, assim pudesse permanecer. Sempre fomos muito zelosos da nossa identidade ou das formas como nos definimos, como se "de" + "finir" não nos conduzisse irremediavelmente para um fim, um terminus que pode parecer coerente, completo, até honroso, mas não deixa de ser um ponto final, fechado sobre si mesmo.
              
É irónico que hoje a dita igreja dos capuchinhos tenha recebido um grupo de música do século XVI, trazendo sob o título de Diásporas um leque estupendo de interpretações de músicas com sabor a África,a  Brasil, a Índia, a Portugal. E é irónico porque estas músicas muitas delas os frades capuchinhos terão ouvido ou até cantado. Mas o sue sentido era o de converter o outro, não o de integrar a sua cultura. Hoje, nesta igreja onde tantas vezes devem ter rezado frades a pedir a Deus as capacidades para converter, ouvimos a fusão da não-conversão, da não-aniquilação da diferença.
                 
O Festival Todos tem este condão de nos levar a vaguear por uns fora de nos que nos fazem perceber que esse fora somos nós mesmos no nosso matizado de heranças e de vizinhanças. O concerto deste fim de tarde foi em tudo um momento de franco diálogo entre diferentes.
             
E os diferentes foram muitos. A antiga igreja estava repleta, com gente fora da porta, amontoada, a ouvir as belas vozes de contratenor dos dois solistas. Idosos locais, muitos; gente ligada às lides das artes, reconhecíveis pela indumentária reconhecível, quase de tribo, imensos. Todos cidadãos a ouvir. Pelo meio, quando uma música terminava, com a liberdade de um concerto sem solenidade, livre, algumas pessoas iam saindo, dando lugar a umas outras tantas que então entravam.
                          
Aí, era da mais rica expressão as faces e os rostos. Quanto de nacionalidades eu vi passar à minha frente! Mas as nacionalidades são nada exactas e menos correctas. Eram rostos que mostravam algum aspecto diferente do meu, mas os ouvidos tinham-se, tal como os meus, deliciado nos sons que, convenhamos, nem a uns, nem a outros diziam directamente nada. Ou diriam a todos, no emaranhado de heranças que somos.
                
No meio de gentes variadas, saem também senhoras idosas, talvez moradoras sozinhas do bairro. talvez crentes que ao domingo debandam a uma igreja me busca de missa. Sim, talvez, porque muitas foram as que ao sair fizeram o mais delicioso gesto repetitivo, de uma vida inteira: viradas para o altar onde nenhum sacrário estava, benzeram-se no gesto de sempre, mas agora, sem darem por isso, na direcção dos músicos, como que assumindo a dimensão sagrada do que ali acontecia.
                
Ainda pelo meio, uma rapariga negra num fundo alvo que contrastava ainda mais a sua tez, saia do meio das gentes. Fez o gesto, o caminho, de tantas outras. Benzeu-se ao sair. Mas não saía para uma rua qualquer, para ir para casa, ou não fosse esta igreja agora parte integrante de um hospital. Ela era uma doente internada, de roupão da própria instituição tinha vindo ao concerto.
        
Não sei se a música agradou a esta jovem doente, acolhida nesse hospital - quer no hospital, quer num concerto, é de acolhimento que devemos falar. Apenas sei que a certo momento, um pombo entrou no edifício vindo de uma brecha qualquer, um rombo no telhado, ou uma janela partida. Esvoaçou e colocou-se no topo de uma coluna junto ao lançamento do arco da cobertura. Claramente olhava a multidão com um ar de espanto. Sem ter obtido respostas, se eram questões o que tinha, levantou voo e, assim como entrara, assim saíra. Nada mais, a não ser uma imagem que culturalmente nos remete para paz.
    
E paz é, sem dúvida, o centro dinâmico deste festival. Paz é estar com os vizinhos, os próximos, sejam eles diferentes ou pretensiosamente iguais. Hoje, saindo da igreja dos capuchinhos, e passando para as longas e intermináveis filas de migrantes a atentar entrar na Europa, mais uma vez me assola a pergunta: porque nascem uns numa Europa livre e bem alimentada, confortável, e com educação e saúde, e outros são nados de belos locais, mas perseguidos pela morte que parece estar-lhes colada a um qualquer destino desde que foram concebidos?

Lembro-me de uma frase, de uma sabedoria popular e profunda, como poucas, porque respira vida, uma vida ingrata, sentida e desiludida, talvez. Há uns anos, uma amiga relatou-me uma situação em que um imigrante, possivelmente cabo-verdiano, entre algum álcool e muito mais de confronto com o pais de acolhimento, dizia aos seus companheiros de viagem no autocarro que vinha de Odivelas para Lisboa: "será que todos são todos?" questionando a suposta igualdade que não encontrava no dia-a-dia.
                  
No TODOS, todos fomos todos em momentos como o que eu tratei agora. Mas ao longo destes anos que o festival já leva, muitas mais foram as ocasiões em que senti, sem dúvida, esse sentimento único de Todos serem Todos, sem excepção, sem máculas nem reparos, sem dúvidas nem constrangimentos.
              
À Academia de Produtores Culturais, ao Miguel Abreu, à Madalena Vitorino, ao Giacomo Scalisi, para apenas citar quem me está mais próximo entre tantos os que montam esta delícia, o meu obrigado!

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Palmira - in Memoriam fotográfico

Como disse no post anterior, há uns anos tive a grato prazer de ir com o meu querido amigo Francisco Moura a Palmira.
         
Foi uma viagem sobre a qual muito teria a dizer. Fá-lo-ei em breve, neste mesmo sítio.
             
Mas agora fico pela reportagem fotográfica, pelo que de material se terá perdido nas últimas semanas às mãos dos terroristas inqualificáveis.
             
               
No topo da colina, um forte medieval que domina a paisagem.
Cheguei ao fim do dia:




                   
                     
Lá em baixo, a cidade... a moderna e, em pleno diálogo, mesmo ao lado, a antiga, notando-se a via central do urbanismo romano, o cardo:


             
          Desci, era noite. 
A iluminação das principais artérias romanas deixava qualquer um num estado de êxtase.






                         
Os edifícios da necrópole romana no Vale dos Túmulos terão sido, há mais de um mês, os primeiros a terem sido destruídos.
Estavam muito bem conservados.
Nas imediações da cidade, no deserto, era uma paisagem única, estes esguios edifícios plantados na areia.
As 10 primeiras imagens deste grupo são da Torre de Elahbel, então a mais bem conservada, erigida entre o séc. Ia.C. e I d.C., agora desaparecida.













                       
                           
A cidade antiga....











             
                 
No museu, muito havia para ser visto e estudado...

                 
             
O Templo de Baal Shamin, também já arrasado:



               
               
O Templo de Bel.
O edifício antigo que mais me impressionou e mais me marcou.
Grandioso nas suas dimensões e opulência.

 (edifício central ao grande pátio - o "santo dos santos")
             
 (túnel de entrada dos animais para sacrifício)
     






 

 (esta e as próximas imagens: altares sacrificiais - com dimensões para sacrificar vários bovinos ao mesmo tempo)
         

 (possivelmente, por onde escorreria o sangue)
             



             
           
O "santo dos santos", o centro ritual e sagrado do templo







             
                 
Baixos-relevo junto ao edifício central


 
         
Procissão de entrada no próprio templo:

           
No século II d.C., mulheres de burca...

                   
Recuperando a imagem bíblica, um soldado esmaga com o pé a serpente apocaliptica?



               
Altar de oferendas:







           
O próprio deus Bel?

                 
Assim era Palmira, a que conheci em 2008.