sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

diário de uma viagem a Israel


dia 0

É como se o acto de chegar a certos lugares ocupasse espaço. Não espaço, de volume, mas espaço, de etéreo, de vazio, aquele que no sentido de um zénite qualquer, segue acima da atmosfera até um nunca mais. Não é de qualquer forma que se chega a determinadas cidades. Acabo de aterrara em Tel Aviv e parece que algo se teve de libertar antes de o avião terminar as longas voltas na pista entre vias, gares e mangas, até estacionar onde finalmente colocámos os pés em terra e sentimos na face o fresco deste ar inverneiro. Não sei se estive num qualquer limbo durante algum tempo, mas pareceu-me que esse tempo nunca mais terminava, se é que ele existiu alguma vez

Nesse avião que tanto custou a largar, uma parte significativa dos passageiros era composta por judeus ultra-ortodoxos. Vinham com as suas famílias, quase todas elas estranhamente pouco numerosas, o que talvez se explique pela tenra idade dos casais. De facto, alguns dos homens ainda eram praticamente imberbes e não estavam casados. Os casados eram-no há muito pouco tempo.

Foi a primeira vez que esteve tanto tempo ao lado de um judeu rigorista e com os preparos estereotipados completos. A meu lado veio sentado um jovem, com não mais de 16 anos, que levava ao limite a sua prática e a sua identidade – pelo menos a forma como ele a via e a vivia.

A comida desse grupo fora previamente encomendada e todos receberam um tabuleiro com os certificados kosher. Mas este meu companheiro de viagem mal comeu depois de lidos ao pormenor todos os rótulos. Mesmo depois de acenar para um outro membro mais velho do grupo, possivelmente a procurar aprovação, não comeu quase nada.

Do outro lado da coxia, uma jovem acompanhava o sue marido, também ele ultra-ortodoxo, e cuidava de um bebé de meses. Ele apenas ouvia uma recitação, possivelmente de um texto sagrado, num gravador que colocava junto à orelha como se caricatura dos velhotes que no estádio de futebol ouvem o relato através de um pequeno transístor.

Era como se nada se passasse à volta. Ela, antes do avião levantar voo, falara comigo a pedir-me para trocar de lugar com o marido. Ficavam os três juntos, anui e troquei. De resto, apenas por mais duas vezes, e em quase cinco horas de voo, os nossos olhares se cruzaram devido a alguma coisa que a criança fizera. E nesses escassos e breves momentos, senti como que o fremido interior da jovem a reprimir-se, quase a acusar-se e mesmo a flagelar-se por olhar para mim.

Quatro filas mais à frente estava um casal, também de judeus ultra-ortodoxos, mas mais idosos, talvez já septuagenários. E digo talvez porque isto de adivinhar idades a quem está fardado, é muito complicado. Mas ele, para além de uma longa barba, imagem de uma tradição diferente da dos jovens, em que todos tinham ralas barbas, mas longas suíças pendentes, estava casado com uma “beirã”. Sim, poderia ser uma avozinha das beiras mais profundas a mulher de lenço no cabelo que o acompanhava. Nunca aquele rosto vira cuidado algum; nunca aquele rosto sofrera tratamento que o distanciasse das agruras de um dia-a-dia violento e exposto ao que o tempo marca.

Por debaixo do lenço estampado com umas ramagens meio abstractas em tons de roxo em fundo negro, como as vestes, havia uma alva calva que eu pude vislumbrar num dos vários momentos em que ajeitou o lenço no cabelo que fora meticulosamente rapado. Da minha companheira de coxia, ficou-me a dúvida. Seria o certinho cabelo dela uma cabeleira?

O tempo passou entre as minhas cogitações e o tempo hierofânico começou exactamente na descida para a cidade. A 800 metros de altitude estavam 17 graus… estranho, quase assustador de inesperado. Ao descer, a temperatura foi-se adequando ao que a meteorologia nos tinha dito em terra, na internet. Lá chegámos ao chão, à pista, com os nove graus dignos da estação, para iniciar a dita espera nas longas voltas na pista entre vias, gares e mangas, até estacionar onde finalmente colocámos os pés em terra e sentimos na face o fresco deste ar inverneiro.


dia 1

Já é noite. Do meu quarto de hotel oiço Mozart. O som virá de uma qualquer varanda fronte da minha. Não me vou levantar. A curiosidade vai ser vencida pelo prazer de desfrutar um som inesperado e impossível de ouvir em situação semelhante no meu país. Foi comovente esta curta experiencia, mas à medida que o som se ia consolidando na paisagem do quarto, ele conduzia-me a escrever cada vez mais, e mais.

Uma cidade em Israel é um excepcional lugar para nos confrontarmos com o que somos nós mesmos. O olhar e o vivenciar é um perfeito Ocidente vs Oriente, sem que nenhum dos lados ganhe, colocando em causa a própria ideia de que sempre algum lado tem que vencer. Ao sair da zona de recolha de bagagem do Aeroporto Ben Gurion, fui surpreendido com a oferta de uma Time Out Israel. Fiquei espantado. A ideia de uma sociedade militarizada, em junção com outra ainda mais castrante na minha visão de preconceito, que é a religiosa, dizia-me ser isto altamente improvável. E não, não só há a dita Time Out, como a cidade tem mais que as actividades culturais, de vanguarda, cosmopolitas, que justificam plenamente guias e mais guias.

Onde termina o Oriente e começa o Ocidente? No aeroporto de Bruxelas um grande cartaz da Turkish Airlines dá forma a essa impossibilidade que, no melhor dos casos, se transforma em riqueza multicultural: “Estre ano, mais uma vez, a melhor companhia aérea da Europa”. E onde é a Europa, senão em Israel e na Turquia, tal como o poderia ser em inúmeros outros locais, até em Portugal, segundo certos critérios!

E os violinos virtuosos de Mozart seguem o curso da pauta. Este que é um instrumento que para sempre no imaginário europeu é quase sinónimo de judeu. Seja através do Violino no Telhado, seja pelos inúmeros mestres que ficaram e ficam a ele ligados, tudo nos remete para esse dedilhar que se combina com a suave abrasão as cerdas de cavalo na corda esticada quase até à ruptura. E esta imagem é exactamente aquilo que julgo poder ser a História judaica: um som único retirado de uma tensão existêncial sempre a rondar o seu próprio limite.

Mas a música segue, continua, tal como a escrita e o tempo que ela procura transcrever. E é de transcrever que se marca o meu dia de hoje. Depois da dupla descida até ao aeroporto em que me espantei com a quase hierofania de ter à nossa espera um inesperado fresco, hoje o dia foi de verdadeira Primavera (e aqui, malgrado os acordos ortográficos, o nome desta estação do ano, apesar de apenas ser isso mesmo, merece maiusculação pelo significado simbólico que ganhou). A reunião de negócios na embaixada correu bastante bem. Foram feitos contactos, apresentados produtos. Parece-me que tudo correu até acima das espectativas.

Mas o essencial do meu dia de hoje foi o que a necessidade e as especificidades desta reunião levantou. Se de palavras-chave se quisesse falar, o seu quadro semântico iria, inevitavelmente, para o das ideias de planificação, memória e património. Nestas três palavrinhas se resume o essencial do meu dia, em conversas várias com alguns dos meus companheiros de viagem.

No Museu da Diáspora, tudo foi despoletado pela fraca presença dos Sefarditas. E digo fraca para não cair no absurdo de dizer nada. E é absurdo, não porque seja mentira, mas porque me defino a mim mesmo como uma procura de relativismos e de impossibilidades de absoluto. Mas, de facto, o museu é um discurso askenazim a quase 100%. De Portugal apenas se fala quando se refere a histórica sinagoga de Amesterdão que tem o nome do país no meio… Mais nada.

Com toda a naturalidade, saímos desconfortáveis. Entre propostas de cartas e de reclamações. Entre meter o embaixador ao barulho ou não. Rapidamente as conversas seguiram para o que é fundamental, até na maneira que temos de criar narrativas que sempre recaem num qualquer “outro”. Como queremos que o nosso património seja reconhecido se não o valorizamos nem lhe damos visibilidade? Não nos podemos espantar com o desconhecimento da riqueza judaica da nossa memória, se nós mesmos enquanto sociedade, não sabemos, sequer, da sua existência!

É complexa a teia em que se tecem os fios da memória. Mas é muito mais complicada a matéria de que são feitos os sonhos, seguindo a frase do escritor britânico batida em anúncio de automóvel. No caso português, ela parece vinda de um jogo de estratégia onde, por absurdo, o improviso parece ser a única ferramenta que se pode usar. Por ridículo que possa parecer, contra tudo e contra muitos todos, lá vai havendo gente que com os poucos instrumentos que tem ao seu dispor, tenta vencer um imenso Golias com uma mínima funda que vai balouçando no ar. Ironicamente, essas pedras lançadas não caem por terra, mas dão frutos e o número de turistas judeus tem crescido imenso.

Mas não é apenas o famoso papão chamado Estado que deveria ser chamado à coação neste processo. As responsabilidades também deveriam ser repartidas com as próprias comunidades locais. Não porque não trabalhem, antes pelo contrário, mas porque é preciso que os “autóctones” das nossa vilas e cidades, cada vez mais tomem todo e qualquer património como seu, como parte da sua identidade, e não apenas como veículo para algum negociozito de família que pode agora vir a prosperar.

Não haverá, nunca, negócio algum do campo da cultura que vingue para lá da ciclicidade das modas, se não tiver como base uma identidade assumida, valorizada, querida (quer como forma do verbo querer, quer enquanto qualificativo da acção).


dia 2

A estas horas tardias, a magia da música clássica já se esboroou em tecnologia que coloca um repuxo a lançar água ao ritmo da interpretação de um computador que o comanda. A música continua a tocar, como nas outras noites, mas não já com a densidade que tinha quando eu não sabia de onde vinha. Era mais sagrado porque inexplicável. Era mais importante na minha narrativa porque não lhe conseguia dar um termo, um sentido narrativo. Ao menos, nas religiões, mesmo sem a dimensão de explicação cartesiana, temos sempre um sentido, uma teleologia. O que me cativava nesta música, enquanto não sabia a sua origem, era exactamente isso, o desconhecido.

Parte da nossa manhã foi passada na Feira de Turismo do Mediterrâneo. Aqui, e felizmente, os sentidos eram todos conhecidos . As reuniões correram bem; a Rede de Judiarias marca lugar e as perspectivas de crescimento são muito importantes. Sim, porque nem só de filosofia podem os homens viver; há que encontrar os meios para trabalhar, para desenvolver actividades que, já agora, juntem a tão esquecida da filosofia, ao que de útil podemos fazer pelos outros e por nós mesmos.

Ainda de manhã, mergulhámos na filosofia pura, agora mesmo Filosofia. Passámos ao lado de Jerusalém, vimos o que separa e o que une. Como dizia alguém do grupo, respira-se aqui uma atmosfera diferente. Não se fica imune. Mas a questão da não-união, criada exactamente pela união, é por demais visível e perturbadora nesse caminho que fizemos até ao Mar Morto. Cidade Santa para três religiões, ela une no que de santo tem para cada uma delas, mas ela separa nas formas de vivenciar essa sacralidade. O expoente máximo é o muro que logo ao lado da cidade, separa Israel do Estrado Palestiniano.

São fáceis e compreensíveis as justificações para esta construção. São eficazes os seus resultados, com uma descida enorme do número de atentados. Mas num lugar sagrado, tolhe o olhar e o entendimento a necessidade de separar aquilo que supostamente deus uniu, parafraseando os casamentos que, queiramos ou não, nas palavras do oficiante, estão irremediavelmente realizados para o resto da vida. As religiões criam coesão entre os crentes, mas fomentam a discriminação entre facções ou não crentes, não membros.

E o mote estava lançado. Depois do confronto do olhar entre Israel e a Palestina, com todas as diferenças urbanísticas, de cuidado da paisagem, da pobreza, de proximidade a um típico Médio Oriente ou a uma ilha refundada em jeito de cidade europeia, regressei no tempo a tempos muito concretos, aos tempos em que o Segundo Templo era recorrentemente posto em causa por grupos de dissidentes (criadores de novas formas de judaísmo) como o grupo de Jesus ou os Essénios de Qumran.

É abissal a paisagem nas escarpas de Qumran. E é abissal no mais longínquo sentido de abismo, tal como o encontramos no Génesis bíblico, em que a palavra que lá foi colocada é semanticamente próxima do nome da deusa babilónia com a qual se criou o mundo, a deusa Tiamal. O Theom que encontramos no texto da Bíblia é a referência ao sem forma, a tudo o que supera a capacidade da humanidade criar conhecimento, o não cognoscível.

E o espaço dessa longa descida ao lago do Mar Morto é isso mesmo. É um Caos porque sem forma, sem ponto por onde se criar conhecimento sobre a paisagem. O ocre intenso da paisagem, a inexistência de água ou de planta alguma é a negação da Vida, a negação de tudo o que cresce e pode criar subsistência. Mas, ao invés, este foi o lugar onde uma comunidade de eremitas decidiu encontrar o seu deus e criar uma metodologia de ascese que em muito se confunde com o cristianismo primitivo. Teria Paulo vindo daqui? Teria Jesus, o futuro Cristo para as comunidades de Paulo, vindo daqui?

Muitas questões levanta esta comunidade e os seus textos miraculosamente descobertos, mas muitas mais levanta a própria natureza do sítio, os ecos que miticamente nos trazem os significados de apodarmos a esse mar interior esse negro, esse nada promissor nome de Mar Morto.

Química e fisicamente, tudo é fácil de explicar. Mas nas cabeças dos iguais a nós, nas cabeças de tantos de nós que viveram nas proximidades a este estranho mar, desde o fim da última glaciação até aos dias de hoje, os ecos dessas características salinas são formidáveis. Tal como o Caos, o Abismo sob o qual paira o espírito de deus no acto criador, que é invocado pela palavra Theom, parente próximo da deusa Tiamat, a água que aqui se bebe nessas palavras é a água desse mesmo Caos, prenhe de Morte, vazia de Vida.

O confronto entre semitas e indo-europeus está aqui mesmo neste sal. Para os romanos, o pagamento aos legionários era feito por vezes em sal, donde vem a nossa palavra salário. Para os judeus, o mar salgado não era Mar Morto, era isso mesmo, simplesmente, Mar Salgado. Numa cultura em que o sal não era usado para tratar a carne de porco, o seu sentido era diferente do dado pelos romanos… Sal era Morte, secava as plantas, ressequia as carnes, era usado par delimitar espaços de morte, círculos sagrados.

Há mais de 2500 anos, Ezequiel, um profeta bíblico do século VI, a época do Exílio na Babilónia, criava a imagem que eu acho mais inquietante a respeito deste mar salgado. Como que num sonho, uma água sagrada mana debaixo do Templo de Jerusalém, segue caminho e, encosta abaixo, vai até o dito mar que então se chamava Salgado. À medida que as novas águas, dessalinizadas, sagradas, chegam ao mar, então morto pelo sal, ele regenera-se e as margens começam, lentamente, a ganhar vegetação… é o fim de um caos, o fim de uma morte o que o profeta tenta vislumbrar através de uma imagem forte e limite: dar Vida ao Mar Morto. Não, dar Vida a um Mar que é Morte.

Tudo aqui nos fala de morte. Lá no alto, na direcção de onde passaram quatro F-16 da Força Aérea de Israel, curvando nos céus mesmo no limite do espaço aéreo da Jordânia, fica o Monte Nebo, o lugar de onde Moisés e a sua turba vinda do Egipto viu a Terra Prometida. Sim, de metáforas se alimentam as identidades: como ver no vale desértico circundante do Mar Morto uma terra que “mana leite e mel”, senão pelo horizonte da poesia? Mas era mesmo de morte que Moisés tratava ao olhar para estas areias, ou não tivessem todos os fugitivos do Egipto recebido a condenação de morrer antes de pisar essa terra que o deus prometera. Nesse promontório, hoje tão bem tratado e acolhedor, Moisés viu o destino do seu povo, mas soube que morreria. A sua missão estava cumprida e, aliás, tal como os outros, também ele não podia pisar a terra por que lutara.

Enfim, mitos à parte, pus os pés na água de morte do Mar Salgado. Toquei nas lamas negras, lodosas dessa mesma salina água. Regressámos a Tel Aviv, a cosmopolita, como que a desmemorizada deste peso todo que as palavras apresentam neste mundo tão pequeno da Terra Santa.


dia 3

Hoje só acordei quando já era mais de metade do dia. Já o amanhã se punha a jeito para a qualquer momento se lançar sobre o dia, quando eu, depois de almoçar, retomei a vida com todas as capacidades, especialmente a de ver o correr do tempo como uma narrativa, uma sequencia de frases que se interligam na mente de um narrador que sou eu. Não tendo mente – ou pelo menos, com ela bastante debilitada – nada de narrativa.

No misto do meu acordar, enquanto o autocarro deambulava pelas verdes planícies da direcção da Samaria, cruzei o olhar com alguns transportes de tanques de guerra. Disse a guia muito rapidamente: “vão para a guerra na Síria”, como se essa guerra existisse mesmo, quanto mais não fosse como potencia, como verdade num mundo de absolutos, mesmo quando, pelo menos para já, nada o demonstra de forma assim tão consistente no quotidiano das gentes.

Acordei com os pensamentos nessa Síria cada vez mais perto. Pelas palavras de Frei Pantaleão de Aveiro, que andou por estas mesmas terras há quase quinhentos anos, percebemos o fascínio por estas paragens tão estranhas a uma cultura, mas ao mesmo tempo, tão parte integrante de nós. Estamos fora e estamos dentro. É Oriente, mas também é Ocidente. É um nós que se separa do corpo e por vezes vemos a pairar sobre o nós mesmos, como se nos despíssemos de uma parte para poder aceder à outra.

Quando visitei Damasco, a mais antiga cidade habitada de forma ininterrupta, ainda não conhecia as palavras deste meu conterrâneo. Com as palavras desse religioso de quinhentos, revivo o fascínio tremendo com que fiquei. Nessa cidade, ele mostra todo o espanto pela sofisticação, pelo cosmopolitismo. São cidades e é vida, um contínuo de mundo o que ele descreve nessa excepcional viagem de há muito. No nosso caso, o autocarro dava todas as comodidades desejadas. Mas este seria o nosso dia do Grito do Ipiranga! A guia seria dispensada, e bem dispensada (ou melhor, mal, para ela!).

E sobre Frei Pantaleão? Não, essa não o dispensei. Na sua narração, desceu para Tiberídes, enquanto nós subimos. A paisagem era cada vez mais verde, com mais vegetação. A aproximação a esse outro lago interior ecoava memórias que em muito tinham a ver com esta viagem: a memória sefardita.

E como tem memória um local que pode ser completamente indiferenciado numa tarde chuvosa. Tudo é igual, tudo é cinzento, tudo é vento, tudo é chuvisco, tudo são nuvens, mas tudo são luzes e esperanças. Foi para a qui que vieram os sábios vindos de Jerusalém quando o Templo foi destruído pelos romanos. Foi por aqui que viveu e que escreveu o rabi al Nassi, um dos marcos mais importantes na criação da identidade do Judaísmo Rabínico.

Mas também foi aqui que Grácia Nasci – retomando o significado do nome que, à letra, quer dizer «príncipe», tal como o nome do rabi do parágrafo anterior - iniciou um projecto de regresso à Terra Prometida. Estávamos por meados do século XVI, e o Sultão Otomano acedia a corresponder ao sonho da judia portuguesa que tanto peso tinha então na economia do Mediterrâneo.

Com um peso dominante nas relações entre reinos na Europa, Grácia Nasci apoiava reis, financiava grandes empreendimentos, era recebida em Istambul como se de um monarca se tratasse. E não o era para a chamada Nação Portuguesa, para os judeus de origem portuguesa? Pagava fugas, financiava retomas de vida, organizava redes de apoio. Mas mais, era “A Senhora”, como tantos autores cristãos referem, tal como Frei Pantaleão de Aveiro, que ao tratar Tiberíades, não teve como não mostrar o poder e a reverência que eram dadas a estas judia portuguesa que em terras tão distantes parecia ter mantido o seu poder intacto.

Mas mais que intacto, o lugar dessa mulher renascentista era catapultado para o horizonte do mito. A Norte desta nublada Tiberíades, em Esmirna, ainda hoje há uma sinagoga que se chama La Señiora. Quantos autores, dramaturgos, cantaram as venturas e desventuras desta mulher que com os seus meios e poder procurou refundar a identidade judaica em diáspora?

Enfim, quão simples e leve é o nosso quotidiano quando comparado com as escassas memórias que temos de alguns da nossa espécie que conseguiram, realmente, ser Grandes! É de sentidos que se deve falar quando nos cruzamos com este mar interior que até tem ondulação como de um Oceano se tratasse.

E se era um Oceano! Pelo menos de significados. Mil e quinhentos anos antes de Grácia Nasci, Jesus parece ter cruzado estas águas no meio de uma tempestade. Dormiria, refasteladamente, quando os discípulos o fizeram retomar a já secular história de Jonas. Nas palavras de um dos evangelistas, aquele que foi elevado a Cristo dos Cristãos, tem aqui uma das suas primeiras afirmações claramente messiânicas. Comparando o seu futuro, a sua morte, aos três dias que Jonas esteve no ventre do grande peixe, Jesus acede a acalmar as águas, exactamente numa situação semelhante à que levara Jonas a ser atirado à água como único recurso para acalmar um temporal que apenas poderia ser fúria divina.

Ao recordar este paralelo tão significativo, com ecos imagéticos tão fortes que nos levam ao Pinóquio com que deliciamos as nossas infâncias, não podia eu imaginar que passados poucos quilómetros, já a caminho do Sul, em Nazaré, iria ver a decoração da porta da Basílica da Visitação, onde um imaginativo escultor colocara essa dito Jonas a prefigurar o fruto desse ventre que a tradição cristã coloca a ser ali anunciado.


Dia 4

É este o meu último dia em Israel. E digo «é» porque há pretéritos que nunca serão “perfeitos”. Mas também não são “imperfeitos”; são, de facto, terminados no que de factual eles implicam, mas são continuados, abertos e criativos no que de futuro lançam. E era assim mesmo. Esta viagem será sempre um futuro no que me deu de reflexão, de crescimento e de conhecimento. De vivência.

A manhã deste foi centrada em reuniões. Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fazer com que o livro que trazíamos sobre Abravanel, escrito pelo pai do Primeiro Ministro, fosse entregue a esse atarefado chefe do executivo, nestes dias com a responsabilidade de formar um governo quase impossível, quase ingovernável! E entregar esse mesmo livro a Isaac Navon, o único antigo Presidente da República de Israel com origem Sefardita. Enfim, uma manhã cheia de significados, com uma agenda da máxima importância para o projecto da Rede de Judiarias.

Na viagem para Jerusalém, retomei o livro que há 4 dias me acompanhava bem no fundo de um saco. Era, na prática, a justificação para esta minha ida a Israel. Não muito tempo antes, dei conta que tínhamos pronta para edição uma tradução do referido livro de Benzion Netanyahu sobre Isaac Abravanel. Imediatamente a Rede de Judiarias, na pessoa do Dr. Jorge Patrão, mostrou todo o interesse em editar o dito livro e em o integrar como peça importante nesta deslocação. E assim foi. Juntaram-se as vontades, e o livro, que se encontrava parado há mais de dois anos, teve vida e viu a luz do dia depois de saído dos prelos.

Foi um dia longo. Com desejo da música clássica das noites passadas. Os sentimentos eram de entrecortados momentos de violino de Mozart, com rompantes quase destrutivistas das Valquírias de Wagner. Sobressaltos. Rudezas e subtilezas. Caminhos e descarrilamentos. Um turbilhão de memórias e de vidas. Entrar na Cidade Velha foi isto tudo e muito mais que as 23 letritas não conseguem transmitir, por mais que eu as conjugue em palavras e frases.

Há uns anos, já uma meia dúzia deles, escrevi com um amigo, um atlas das religiões. Na capa desse volume, colocámos uma imagem linda tirada do Monte das Oliveiras em direcção à Cúpula da Rocha. Al-Aksa ao fundo, sob a esquerda, ao centro a Mesquita Dourada como que planando na chamada Esplanada das Mesquitas, o sítio do antigo Templo de Jerusalém, onde ainda se encontram alguns muros, o Muro das Lamentações. E agora, era eu que ali estava a olhar aquela paisagem, centrando-me na Porta Dourada, a porta encerrada, emparedada, e de onde se darão acontecimentos fundantes dos últimos momentos, dos tempos futuros que hão-de vir, das catarses, do Fim do Mundo, segundo as tradições monoteístas. Recolhi folhas de oliveira desse monte tão árido que apenas se encontra plantado de campas brancas, pontilhadas por pequenas pedras, também elas brancas, em memória da visita de alguém.  Só o negro das vestes de alguns judeus ultra-ortodoxos a caminha na colina quebrava esse branco tórrido debaixo do sol que, ao menos esse, quando nasce diz-se que é para todos, ao contrário do fim dos tempos.

Não sei se algum fim do mundo virá. Os últimos proclamados redundaram em continuidade… Não sei se a dita porta se abrirá num dia final. Nem sei se os mortos sepultados nessa colina a ela sobranceira terão um destino diferente do simples regresso ao pó. Mas não consegui não verter uma lágrima ao olhar para aquele “concentrado” de lugares sagrados, onde tantas mentes, tantos quereres e tantos creres, colocam o que de mais essencial concebem sobre o mundo: o princípio e o fim.

Um não crente sente-se pequeno perante tanta humanidade, perante tanta imagem do que mais profundo somos, os medos, os anseios, os desejos. Messias, Ungidos, Profetas. Hoje, mais um grupo, entre muitos de caminhadores, de peregrinos a não sabem bem o quê, mas que não conseguiram não ir a este lugar. Se não tivesse mesmo significado, se os seus ecos não reverberassem na nossa mente, tínhamos passado sem ir a Jerusalém Velha. Mas fomos.

Descemos até ao vale, e subimos até à colina fronteira. E era fronteira, sim. Uma fronteira entre mundos. A cidade antiga, mítica, estava ali, de fronte a mim. À espera para ser tocada. Vivida.

Ir ao Muro das Lamentações é uma daquelas experiencias de que ninguém se deve furtar. Umas linhas mais abaixo, uns parágrafos, talvez, direi a respeito de outro local “que todo o ser humano lá deveria ir antes de morrer”. Como estes superlativos devem ser tomados sempre em doses moderadas para não lhes retirar sentido, aqui direi apenas que, se morrer agora, já serei outro. De facto, o que se sente neste lugar é especial. Ao lado de toda aquela gente a orar, é quase impossível manter-me como Historiador e continuar a olhar e a analisar. Não se bem quem sai de quem. Apenas sei que um silêncio se apodera de nós.  Inevitavelmente, foi ali que escolhemos tirar uma foto de grupo, a única.

Embrenhados nas ruelas da cidade, seguimos até ao Santo Sepulcro. Mais um lugar de imaginário, que nem sequer eu conseguira imaginar como era. De paredes, de decoração, sim. Basta um click numa busca de um Google, e vemos como é. Mas depois falta o resto que se conhece através do estar, do ser, esses dois verbos que algumas línguas germanas continuam a teimosamente não distinguir.

Perdi-me no tempo a filmar as pessoas que reverentemente se aproximavam de um tampo de mármore e a ele se abraçavam, nele se deixavam cair, nele tocavam. Terá sido ali que Jesus, nesse momento já o Cristo, foi colocado quando morto e ainda não ressuscitado. Vi os rostos e os corpos que deambulavam pelos caminhos interiores da basílica. No escuro dos interiores, pontilhados por umas velas e umas lâmpadas fugazes, pareciam espíritos ou, pelo menos, entidades difusas, quase sem contornos. Era lindo.

Sai para o exterior solarengo revivificado. Afinal, ainda não me recompusera da visita de manhã: Museu do Holocausto. Já escrevi sobre matanças, sobre massacres. Já tive de ler muitas linhas sobre atrocidades, sobre violência e sobre morte. Mas nada que tocasse a escala, os métodos, a desumanidade conseguida pelos alemães de há duas gerações atrás.

Era muito esperada por mim esta visita. Tivemos a sorte de ser recebidos e guiados por alguém muito especial, Avraham Milgram, investigador do próprio Yad Vashem, o referido “museu”. E coloco esta última palavra entre aspas, porque não sie se posso afirmar que se trata de um museu. É mais um lugar de memória. E de que memória. Entramos em silêncio, em silêncio prosseguimos, e em silêncio saímos. Por sinal, o fim do percurso termina mesmo com um lugar de vislumbre da paisagem, um miradouro, que como nos deixa entregues a uma paisagem de um verde natural que, no fundo, nos afirma que as árvores são muito melhores que nós.

Fiquei marcado. Doeu ir àquele espaço. Tudo é excepcional na concepção. Um conjunto de edifícios ímpares. Mas o melhor é o sentido transformador que provoca em nós. Um amigo, companheiro desta viagem, filho de rabi, perguntava-me no fim, o que eu achava. Respondi, entre lágrimas, “que todo o ser humano lá deveria ir antes de morrer”.

Tel Aviv, Lisboa, Fevereiro de 2013.